Jornal Metropole
Home
/
Notícias
/
Jornal da Metropole
/
Formadas em lucrar: faculdades privadas de Salvador viram alvos de reclamações de alunos e professores
Jornal Metropole
Formadas em lucrar: faculdades privadas de Salvador viram alvos de reclamações de alunos e professores
Instituições de ensino superior de Salvador se distanciam, cada vez mais, do verdadeiro conceito de universidade e passam a ser alvos frequentes de reclamações de alunos e professores
Foto: Felipe Aguiar/Metropress
Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 07 de agosto de 2023
Os corredores andam cheios. As salas de aula físicas também. Mas não tanto quanto os ambientes digitais, os canais de comunicação para queixas e as contas bancárias das empresas. Até aqui, poderíamos estar falando de qualquer segmento, se não fossem as salas de aula e as mensalidades que chegam até a R$ 16 mil. As pistas deixam claro: o roteiro da vez passa pelas principais faculdades particulares de Salvador, que acumulam reclamações de alunos e professores , deixam a desejar no quesito ensino e perderam completamente a essência do espaço universidade.
Essa não é uma torcida pelo fim das faculdades particulares. Elas são fundamentais para o acesso ao ensino superior. Representam 87,8% das instituições e, só entre 2011 e 2021, geraram quase 22 milhões de vagas. Sozinhas, as universidades públicas não conseguiriam chegar perto disso, somaram cerca de 800 mil vagas.
A divisão nem sempre foi assim. Na verdade, durante décadas, eram as públicas que sustentavam o setor. Em 1960, por exemplo, apenas 1% dos jovens estava nas universidades. Eram 100 mil vagas, sendo 60% públicas e 40% privadas. O cenário começou a mudar em 1968, quando o regime militar fez uma reforma universitária, após muito protesto e passeata dos chamados “excedentes” - aqueles que tinham boas notas nos vestibulares públicos, mas não eram convocados por falta de vagas. As mudanças acabaram favorecendo a iniciativa privada e muitos empresários viram no ensino uma oportunidade de negócio.
E claro, as universidades particulares são negócios, têm o lucro como objetivo. Mas, mesmo cometendo o equívoco de deixar de lado a importância da educação para a sociedade e o verdadeiro sentido de uma universidade, uma empresa deveria, ao menos, oferecer qualidade no serviço (e aqui leia-se no ensino) e no atendimento ao consumidor (neste caso, o aluno
Sem compromisso com o estudante
No Centro Universitário UniRuy, a queixa mais recente é, na verdade, sobre a não prestação do serviço. Uma aluna da instituição, que preferiu não se identificar, contou que, prestes a se formar, no décimo semestre de psicologia, ela e os colegas ficaram um mês sem aula. O motivo, de acordo com eles, foi a demissão de professores, que acabou suspendendo temporariamente três disciplinas. As classes foram retomadas apenas no início de setembro e a proatividade da universidade logo apareceu no momento de cobrar a mensalidade.
O Jornal Metropole entrou em contato com a UniRuy em busca de mais detalhes e insistiu na questão financeira. A resposta, no entanto, limitou-se à parte acadêmica. “A instituição tem o compromisso com seu calendário e todas as atividades relacionadas ao segundo semestre de 2023 estão sendo cumpridas integralmente, sem nenhum prejuízo acadêmico”, diz a nota.
A situação já é conhecida no setor. Em janeiro deste ano, o Jornal Metropole já havia denunciado algo similar, vivenciada pelos alunos da Universidade Católica de Salvador (Ucsal). As queixas na instituição, no entanto, já haviam explodido em julho de 2022, quando foi iniciado o processo de venda da universidade para a Ecossistema Brasília Educacional. Antes da transação, a Ucsal acumulava uma série de dívidas e acabou demitindo um grupo de docentes, sem justa causa. Alunos passaram então a reclamar do impacto disso nas aulas. Os professores chegaram a enviar uma carta suplicando que o Cardeal Arcebispo Primaz do Brasil Dom Sergio da Rocha intercedesse de alguma forma. Mas apelo aos valores do cristianismo não ajudou muito
Os últimos anos marcaram um boom nas transações do ensino superior. Só entre 2021 e o primeiro semestre de 2022, foram 91 instituições vendidas para grandes grupos. A Bahia entrou nessa. Empresas de fora do estado e até do Brasil compraram faculdades e as transformaram em máquinas que prometem o sucesso profissional. Abriram mão da relação cultural com o estado, do compromisso com o pensamento, com a pesquisa, com os valores humanistas e com o verdadeiro sentido de uma universidade.
A Unifacs é um bom exemplo disso. Originalmente foi formada por professores de administração da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Depois, foi vendida ao grupo americano Laureate, sob a justificativa de que iria possibilitar estágios nos Estados Unidos. Nada aconteceu. Mais recentemente, em 2020, a instituição passou para outras mãos: foi adquirida pela nima em uma transação de R$4,4 bilhões. A nova dona da Unifacs é uma das maiores empresas do ramo e uma das que mais lucra também: no ano passado, sua receita líquida foi de R$ 3,56 bilhões. Mas, se a compra foi positiva para a nima, para os alunos, nem tanto.
Na mira da Justiça
A instituição se tornou uma das mais conhecidas do Ministério Público (MP-BA) e da Justiça. E isso não é pela formação de bons advogados. No ano passado, por exemplo, foi obrigada judicialmente a criar um setor específico para atender as demandas relacionadas aos erros de seus novos sistemas eletrônicos. Antes disso, alunos enfrentavam cobranças indevidas e dificuldades até para acesso ao portal. Isso tudo recheado com problemas na comunicação com a instituição. E mais recentemente, o MP ajuizou uma ação - que não foi a primeira contra a instituição - por serviços educacionais prestados de forma “deficitária e inadequada”. Entre os pedidos feitos à Justiça, estão a proibição de aumentos exorbitantes e injustificados na mensalidade e o fim de aulas remotas para alunos de cursos presenciais. Pedidos que deveriam parecer óbvios.
Em queda de braço com os alunos
Óbvio também deve ser a oferta de disciplinas essenciais para a conclusão de um curso. Mas não é o que parece para o Centro Universitário Regional do Brasil (Unirb). Alunos da instituição, neste caso de Tecnologia em Pilotagem Profissional de Aeronave, denunciaram em junho que a universidade não estava disponibilizando matérias exigidas para a emissão dos certificados. Na época, o Metro1 recebeu relatos de alunos que estavam há sete anos nessa queda de braço com a instituição e, enquanto isso, acumulando dívidas de mais de R$100 mil com o Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior).
A reportagem chegou a tentar contato com a Unirb, mas, na época, foi informada que o reitor não iria se pronunciar sobre o assunto, pois ele estava sendo resolvido judicialmente. O problema, segundo o MP, começou quando a universidade ofertou o curso sem possuir autorização da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), assim não conseguia oferecer a parte prática do curso.
Carteiras vazias
As mensalidades das faculdades particulares de Salvador podem chegar a R$16 mil. É o caso do curso de Medicina da Unime. O faturamento com um estudante pode ultrapassar, ao final da graduação, as cifras do milhão. Mas os problemas enfrentados pelos alunos independem da mensalidade. No final do ano passado, alunos de medicina denunciaram que chegaram a ser impedidos de assistir às aulas e goram até expulsos das salas. Em comum, todos estavam vinculados ao Fies e pagam uma coparticipação à faculdade, já que a mensalidade do curso ultrapassa o valor máximo oferecido pelo financiamento.
A instituição, no entanto, cobrava um valor que, segundo ela, estava em aberto após um erro no sistema entre a faculdade e a Caixa. Após a repercussão, a universidade finalmente resolveu negociar com os alunos. Mas o constrangimento ficou. A Unime também é de um grande grupo, a Cogna Educação, nona maior empresa de ensino do mundo. No primeiro trimestre desse ano, ela anunciou um lucro líquido ajustado de R$ 117,7 milhões. Ironicamente, no mês passado, a Unime resolveu cobrar pelo estacionamento aos estudantes do campus de Lauro de Freitas. Os alunos permanecem indignados, mas a instituição alega que a medida foi pensando na segurança e bem-estar deles.
Sem ensino e sem pesquisa
Entre as duas mil melhores faculdades do mundo - segundo o ranking do Center for World University Rankings (CWUR) -, o Brasil tem 59 instituições. A Ufba está entre elas. Apenas cinco são particulares e nenhuma delas é de Salvador. Mas as faculdades privadas protagonizam outra lista: a das instituições de ensino que não produzem conhecimento. Um relatório disponibilizado pela Clarivate Analytics à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) mostrou que não há pesquisa científica relevante nessas universidades.
Parte dos alunos também não está saindo bem preparados para o mercado de trabalho. Pelo menos é o que aponta o próprio Ministério da Educação, quando revela que mais de 40% desses cursos tiveram desempenho considerado ruim na última edição do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). Então, se não há produção de conhecimento, não há ensino de qualidade, não há valores humanistas de uma universidade e nem um bom atendimento ao aluno, só há mesmo o lucro.
📲 Clique aqui para fazer parte do novo canal da Metropole no WhatsApp.