Editorial
Áreas verdes: A força da grana que destrói coisas belas
Venda de patrimônio ambiental pela prefeitura de Salvador expõe o atropelo de leis em favor da especulação imobiliária
Foto: Reprodução
Em iniciativa absolutamente ilegal e marcada do princípio ao fim por uma série de irregularidades, a prefeitura de Salvador iniciou na quinta-feira o leilão de 13 terrenos e áreas verdes que fazem parte do pacote de 40 imóveis desafetados por projeto de lei de autoria do Poder Executivo, aprovado pela Câmara de Vereadores em 20 de dezembro do ano do passado. Não se questiona a prerrogativa que a administração municipal tem de vender patrimônio público sem utilidade prática e reverter os recursos arrecadados em ações que beneficiem a população. Desde, é claro, que proceda de acordo com as regras vigentes. No entanto, o que se vê é o contrário. Vamos por partes.
É essencial que o cidadão entenda o que está em jogo e onde os direitos que possui foram desrespeitados. Do modo com o qual o assunto tem sido tratado, muito provavelmente para dificultar o entendimento da imensa fatia da sociedade que desconhece o vocabulário jurídico, torna-se necessário abordar o tema com a clareza que ele exige. O que passa pela explicação do significado de desafetar, ato em que o Poder Público abdica da finalidade destinada legalmente a determinado bem e, com isso, ganha respaldo para tocar o passo seguinte, a autorização para aliená-lo. Trocando em miúdos, obtém passe-livre para transferir a propriedade, seja por venda, doação, permuta ou concessão.
Na esfera municipal, a desafetação de imóveis que pertencem ao patrimônio público - em suma, eu, você, nós - e a consequente alienação só podem ser feitas com a chancela do Legislativo, representado em Salvador e todas as demais cidades pela Câmara de Vereadores. Até aí, tudo ocorreu dentro dos limites da lei com o projeto encaminhado pelo prefeito Bruno Reis. O problema está nas entrelinhas. Algo que a sabedoria popular sintetizou há séculos através de uma conhecida expressão: "O diabo mora nos detalhes".
Ao pedir autorização para desafetar um punhado de terrenos, o prefeito ignorou dispositivos da legislação que disciplina o uso e ocupação do solo do Município. Para efeito de ilustração, é ela quem impede, por exemplo, que fábricas de produtos químicos ou de materiais inflamáveis sejam instaladas em áreas residenciais ou que empreiteiras tenham salvo-conduto para erguer um megacondomínio de luxo nas dunas de Stella Maris. Como algo ruim sempre pode piorar, a proposta atropelou a lei aprovada durante a gestão do antecessor e padrinho político do prefeito, sob promessas de proteger o que ainda restava de riqueza natural na cidade e evitar prejuízos ao meio-ambiente. A realidade, como se pode constatar, é diferente.
No caso da alienação de bens de uso comum, a exemplo de áreas verdes, há uma vedação legal, exceto em situações especiais nas quais se comprove um claro e evidente interesse público. O que não se aplica à intenção de vendê-las a investidores poderosos que atribuirão, certamente, destino diverso do que se pode traduzir como bem-estar coletivo. Tal proibição não deve ser ignorada pelo simples argumento de que os recursos públicos obtidos com o negócio possam estar a serviço de outro interesse público.
Áreas verdes têm o caráter de bem público de uso comum do povo. São elas que garantem a cobertura vegetal do espaço urbano e contribuem de modo significativo para a qualidade de vida e o equilíbrio ambiental das cidades, em razão de múltiplas e relevantes funções que exerce. Entre as quais, reduzir os níveis de poluição, de ruídos e da temperatura. A progressiva diminuição desses espaços é o que vem transformando Salvador em uma cidade feita de asfalto, cimento, concreto e aço, cada vez mais quente e mais insuportável de se viver. Nesse sentido, a capital baiana trafega na contramão de outros grandes centros de países desenvolvidos, onde a preservação ambiental se sobrepõe aos interesses empresariais e ao predadorismo da especulação imobiliária em toda sua ferocidade.
Dentre os bens desafetados e disponíveis para a alienação, a polêmica maior diz respeito à área localizada na encosta do Corredor da Vitória, enquadrada como Área de Preservação Permanente e protegida pelo Código Florestal, lei federal que também foi tratorizada pelo rolo-compressor da prefeitura. Esse espaço foi doado ao Município exatamente por sua qualificação ambiental, como forma de viabilizar a construção do icônico condomínio Mansão Carlos Costa Pinto.
Agora, a administração pública pretende vender tal área, blindada por leis de proteção em âmbito federal e municipal, já destituída de potencialidade construtiva, para grupos empresariais interessados em levantar um empreendimento imobiliário de alto padrão, e os direitos da coletividade que se danem! É importante ressaltar que a desqualificação de áreas verdes e de preservação permanente para alienação a empreendedores pode abrir um precedente perigoso.
Mais especificamente o fato de que outras áreas semelhantes poderão ser liberadas para os mesmos fins, com a participação ilegal do Poder Público e indiferente à sustentabilidade ambiental. Diante de agressões variadas a princípios administrativos e normas legais, cabe a devida ponderação por parte da prefeitura de Salvador e a atenção vigilante por parte do Ministério Público. É urgente impedir que o bem coletivo seja sepultado pela força da grana que destrói coisas belas.
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