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Segunda-feira, 01 de julho de 2024

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O solidário, o Pix e o câncer fake

O solidário, o Pix e o câncer fake

Com a multiplicação dos golpes, o que está morrendo mesmo é a vontade do brasileiro de aderir a causas com o objetivo de ajudar

O solidário, o Pix e o câncer fake

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 27 de junho de 2024 às 00:09

As facilidades geradas pelo advento do Pix no Brasil e o alcance e a celeridade proporcionados pelas redes sociais ameaçam destruir um dos estatutos mais citados pelos brasileiros quando se trata de autoelogios: a solidariedade. Somam milhares as pessoas inescrupulosas que, com um número de Pix e um perfil em rede social, têm apelado à generosidade popular para se beneficiar de contribuições em dinheiro doado por gente de boa-fé que se compadece diante de histórias pessoais trágicas usadas como ponto de partida para pedir doações.

O caso inescrupuloso da vez é do influencer goiano Igor Viana e sua ex-companheira Ana Vitória, pais de uma criança de dois anos com paralisia cerebral. Vieram a público falas do pai debochando dos brasileiros que fizeram doações por Pix atendendo aos apelos dele para ajudar a custear as despesas e o tratamento da menina. Igor chama os doadores de trouxas por depositarem dinheiro em sua conta e admite que usou mesmo o dinheiro para suas necessidades pessoais, além de se referir à menina como um estorvo e chamá-la de chata.

A mãe é investigada pela polícia de Goiás pela suspeita de ter usado as doações à filha para pagar cirurgias plásticas e procedimentos estéticos. O caso Igor Viana, que não trabalha e vive “da internet”, é apenas o da vez. São inúmeros os golpes bolados em torno de crianças e pessoas doentes. Muitos deles, inclusive, se referem a filhos e crianças que sequer existem. São rostos, nomes e corpos forjados, às vezes roubados na própria web, usados para pedir recursos para tratamentos de doenças graves ou raras, compra de equipamentos de cuidados como cadeiras de rodas motorizadas, de passagens áreas para tratamento fora do domicílio ou compra de medicamentos caríssimos sem os quais o paciente em nome de quem se pede morre.

Com a multiplicação dos golpes, o que está morrendo mesmo é a vontade do brasileiro de aderir a causas com esses objetivos. Em Salvador, temos um caso célebre, o tal desvio dos recursos arrecadados via Pix através de um programa popular de TV, cujos integrantes foram demitidos após a acusação e cujo processo judicial se arrasta sem que se saiba exatamente o que e como aconteceu, já que, além da demissão pela emissora, nada de concreto aconteceu.

O caso do câncer fake

Em outra emissora, os acusados criaram um outro programa popular, desta vez sem pedir Pix para ninguém. Inúmeros casos também vieram à tona no contexto da tragédia do Rio Grande do Sul. Muita gente, nem todos desonestos, claro, pediu contribuições em dinheiro e via Pix pessoal para ajudar as vítimas das enchentes, as humanas e os animais. Alguns eram golpistas. Hoje soa ingenuidade ou limitação cognitiva quem faz uma doação sem pensar inúmeras vezes ou sem gastar algum tempo pesquisando a história por trás do pedido.

A falta de escrúpulos e a cara de pau dos falsos desvalidos chegam ao ponto de a história real chocar pela desfaçatez. Durante muito tempo, uma jovem em Salvador arrecadou bastante dinheiro das pessoas. Através das redes, milhares de seguidores se tornaram profundamente comovidos com o diagnóstico de câncer raro da menina. Não era raro, não era câncer, não havia diagnóstico nenhum, e tudo não passava de uma farsa montada por ela e pela própria mãe. A sordidez das duas beira à psicopatia. A tal raspava a cabeça, usava maquiagem para empalidecer o rosto e filmava cenas reais das duas em casa, enfiando catéter e agulha nos braços, com direito a sangue espirrando, tudo para dar fidedignidade ao câncer inexistente.

A mãe a levava ao shopping com catéter no braço, e não foram poucas as pessoas que acompanhavam a rotina via redes sociais. E o mais importante: colaboravam fazendo depósitos regulares em Pix. Uma googlada vai lhe contar tudo isso e muito mais. Até aluguel e supermercado houve quem bancasse regularmente para as duas. Por conta de casos como o de Igor, do pix na TV e da jovem com um câncer que nunca existiu, o brasileiro está desistindo de uma característica sua que era lugar-comum: a generosidade. Ninguém quer correr o risco de entrar numa história alheia como generoso e sair como idiota.