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Sábado, 27 de julho de 2024

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Cachorros, cavalos e polarização no RS

Cachorros, cavalos e polarização no RS

A crise gaúcha tem produzido algumas das imagens e dos efeitos colaterais mais tristes das tragédias brasileiras, que, convenhamos, não são poucas

Cachorros, cavalos e polarização no RS

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 16 de maio de 2024 às 00:20

Um cavalo imóvel, durante quatro dias, sem mover as patas um centímetro que fosse, sobre um telhado de amianto e cercado por uma imensidão de água. Um cachorrinho magro, resgatado, envolvido num cobertor quente, no colo de uma voluntária, e que mesmo assim continuava a mover as patas da frente no ar, ininterruptamente, como se ainda nadasse, numa demonstração explícita do trauma de ter sido obrigado a nadar dias fugindo da morte. Porcos enganchados, presos, vivos e mortos, no topo de árvores gigantescas. Uma égua presa, involuntariamente, dentro de um apartamento, no terceiro andar de um edifício, onde estava há 10 dias, sem comer. Supõe-se que ela foi subindo as escadarias do prédio fugindo da água, até não conseguir sair do quarto de um apartamento. 

Sendo o animal muito maior que a janela do apartamento, que era o único lugar possível por onde se poderia tentar resgatá-la, o trabalho para tirá-la de lá durou mais de 10 horas. As imagens dessas cenas estão a um clique no seu celular. Até a manhã dessa quarta-feira, 15 de maio, eram 614 mil gaúchos fora de casa, a maioria em abrigos, 21 milhões de pessoas afetadas pela tragédia, 446 municípios atingidos pelas águas e 11 mil animais resgatados vivos. Muitos, incontáveis, estão mortos. Mais de 10 dias após o Rio Grande do Sul ter praticamente submergido embaixo d’água, e continuar submerso e submergindo em novos trechos, a tragédia tem produzido algumas das imagens e dos efeitos colaterais mais tristes das tragédias brasileiras, que, convenhamos, não são poucas. 

A cada uma delas, sobe mais o sarrafo da nossa indigência moral, fermentada e puxada pelos discursos de ódio, pelo pior que há da exploração política partidária, pela sensibilidade de ocasião de quem tem, de fato, poder para mudar as coisas. É o bolsonarismo, o petismo, o lulismo, o antipetismo, a esquerda, a direita, o ativismo político militante, o lacre de oportunistas e, acima de tudo, as facções armadas saqueando e roubando o pouco que sobrou de quem abandonou sua casa e fugiu para um abrigo para não morrer. O movimento de solidariedade é imenso, poucas vezes visto no Brasil nessa escala, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. 

Não se trata de considerar que a solidariedade que gera milhões em doação em dinheiro e incontáveis toneladas de donativos apagam o lado imoral de quem usa a tragédia para promover a nojeira ideológica e inflada de mau-caratismo e sordidez. Em meio a isso tudo, uma tese parece emergir com um grau de emoção e pureza que ultrapassa a polarização que a tudo contamina: a comoção despertada pelos animais, dos domésticos aos de grande porte e os silvestres. É como se soubéssemos, em algum lugar do inconsciente coletivo, que salvar homens, mulheres, crianças, doentes, idosos, bebês, etc, é o princípio zero, corticalizado do nosso senso de humanidade e comunidade. Há algo quase de automatismo em salvar nosso semelhante. 

Uma égua no apartamento

Já sobre os bichinhos, esse diminutivo comumente usado por quem não é emocionalmente calcificado diante de um animal, sobretudo em sofrimento, sabemos: na fuga da morte, entre carregar um filho e o cachorro ou os gatos da família, o sentido da pergunta e da escolha naufraga, sequer produz sentido. Diante dos milhares de cachorros e gatos, além de outros animais, que nesses 10 dias temos visto sendo a razão de milhares de pessoas se lançando em águas profundas, sujas, contaminadas, para salvá-los, parece haver uma zona neutra e convergente de afeto: os animais. Talvez um dos temas comuns a esquerda e direita. 

Ah, mas tanto a esquerda e a direita estão sim emocionadas e comovidos com o resgate e o cuidado com os humanos. Não é só com os cachorros, não. Sim, mas tem muita gente boa dos dois lados embalando essa emoção e essa comoção em caixas horríveis. Não falta gente de esquerda dizendo que quem vota em Eduardo Leite merece submergir embaixo d’água ou que gaúchos merecem doação de nordestinos pela dignidade de quem dá, mas não por serem objeto de mérito para isso, pois parte deles queria mesmo era o separatismo para não carregarem o peso do Nordeste pobre nas costas. E não falta gente de direita invocando o fato de o governador Eduardo Leite ser gay e casado para levantar a tese de uma punição divina contra o povo gaúcho. Amores perros é o que parece parar intocável na emoção de todo mundo. Só os cachorros, os cavalos e os gatos nos salvam da polarização.