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Sábado, 27 de abril de 2024

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Salvador: 40 anos a mais de catrevagem

Salvador: 40 anos a mais de catrevagem

Foi a união do Caramuru com os tupinambás, seu casamento com Catarina Paraguassu e a alteração de suas naturezas iniciais para um estado mestiço, que formou o caráter sem-caráter da cidade que amamos

Salvador: 40 anos a mais de catrevagem

Foto: Reprodução

Por: James Martins no dia 28 de março de 2024 às 07:45

Neste ano, o aniversário de Salvador cai em plena sexta-feira santa: 475 anos da primeira capital do Brasil. Na verdade, não se sabe a data de fundação da cidade e, nem mesmo, se houve de fato um gesto, uma cerimônia de fundação. Por isso, decidiu-se fixar o aniversário no dia em que Tomé de Sousa e sua trupe desembarcaram no Porto da Barra: 29 de março de 1549. Pelas minhas contas, porém, não devemos comemorar apenas 475, mas 515 anos de Salvador — a ser contados a partir de 1509, ano do naufrágio de Diogo Álvares nas águas do Rio Vermelho, ali por onde hoje chamamos de Mariquita. Sim, foi a união do Caramuru com os tupinambás, seu casamento com Catarina Paraguassu e a alteração de suas naturezas iniciais para um estado mestiço, híbrido, cuja identidade é justamente a indeterminação, que formou o caráter sem-caráter da cidade que amamos e de que tanto nos orgulhamos.

Quando Tomé de Sousa chegou, com ordens de ordenar e construir uma fortaleza, uma cidade militar, foi essa catrevagem que ele encontrou. E foi isso que prevaleceu: a abertura em vez do fechamento. Cercada de fortes para lacrar sua costa, seus interiores e suas portas, traçada arquitetônica e geometricamente na planta, Salvador permanece sendo o oposto disso tudo: arreganhada e desorganizada como poucas. Aqui, nada é estrangeiro. Tudo que chega é devorado e se torna rapidamente nativo e, mais do que isso, tradicional: do pano da costa à coca-cola, aquela bebida que os americanos inventaram para acompanhar o acarajé.

O próprio nome Mariquita é um bom exemplo de coisa soteropolitana pela própria natureza. Soa como um perfeito apelido português, diminutivo de Maria. Há, inclusive, um restaurante chamado Dona Mariquita, homenagem a essa sugerida/imaginada matriarca lusitana. O lugar do naufrágio ficou conhecido como Largo da Mariquita. O nome, porém, sequer tem origem portuguesa, mas tupi. Quem nos explica é Teodoro Sampaio (1855-1937), no seu livro “O Tupi na Geografia Nacional” (1901). Trata-se da junção de três palavras daquele tronco linguístico: mair (= francês) + y (= rio) + kyta (= naufrágio). Mair-y-kyta, isto é, o rio onde naufragou o francês. Isto porque, mesmo sendo português, Caramuru navegou até aqui sob bandeira francesa, como um traidor de sua pátria, de sua origem. Mariquita é uma corruptela oral do tupi que mimetiza um luso tratamento carinhoso, inclusive trocando o gênero de masculino para feminino. Coisas da Cidade da Bahia, onde tudo se funde e se confunde, com ou sem H.

Não é por acaso que aqui, a comemoração da maior data da cristandade, a Paixão de Cristo, é feita com uma ceia de origem africana, com moqueca, caruru, vatapá… A sexta-feira santa cair no dia do aniversário da cidade deve ser encarado como um presente!