Faça parte do canal da Metropole no WhatsApp >>

Sábado, 27 de julho de 2024

Home

/

Artigos

/

Quando o dono da festa é o dono da notícia

Quando o dono da festa é o dono da notícia

O que acontece quando os mesmos empresários donos da festa em cujo camarote acontece uma agressão por parte de profissionais contratados são também os donos do principal conglomerado de imprensa da cidade? 

Quando o dono da festa é o dono da notícia

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 01 de fevereiro de 2024 às 00:00

Quatro dias depois de o produtor cultural Roberto Júnior ter sido brutalmente agredido, física e moralmente, no camarote do principal festival de música de Salvador, ninguém explicou ainda o que aconteceu nos momentos que antecederam e que levaram à barbárie. Espera-se, por óbvio, que os empresários donos da festa, as empresas contratadas para realizá-lo, a empresa de segurança do evento e, principalmente a polícia, apresentem publicamente uma linha do tempo e os nomes dos envolvidos, detalhando o contexto em que um grupo de seguranças se sentiu autorizado a torturar um jovem sozinho, desarmado e indefeso. 

Fizeram isso dentro de um banheiro de um espaço privado e no tal do espaço escuro dos fundos reservado que é o fetiche dessas tropas que fazem esse tipo de abordagem. Explicação para isso ninguém vai ter, obviamente. Mas os agressores abordaram Roberto no banheiro, o acusaram de estar furtando celulares, no plural, no camarote do festival. Arrancaram sua pulseira-passaporte de acesso ao evento, tomaram o celular para que ele não registrasse as agressões em imagem e o agrediram. Quem o acusou? Com que evidências? E onde e em que manual de segurança é aceitável que vários homens agridam fisicamente quem quer que seja que não ofereça perigo, que não esteja armado e que esteja impedido de reagir diante da força bruta de quem o aborda? 

Ah, podem ter se confundido abordando a pessoa errada? E qual é o criminoso certo para que profissionais de segurança já abordem assim, com porrada na cara? Por ser um profissional de comunicação, por ter argumentos e por não se calar, Roberto certamente conseguirá pelos meios legais punição contra seus agressores e reparação pelo que sofreu. 

Mas o assunto a partir daqui é outro: o jornalismo, que parece estar respirando por aparelhos, tem nesse caso um extrato do que acontece quando se dá o cruzamento de interesses gerado por uma soma que se aproxima do zero da perspectiva do cidadão: o que acontece quando os mesmos empresários donos da festa em cujo camarote acontece uma agressão por parte de profissionais contratados são também os donos do principal conglomerado de imprensa da cidade? 

Manchetando

O desafio que se escancara não é sobre o jornalista A, B ou C, pessoalmente. Nem sobre editores ou cargos de direção. O olho do problema está no poder, na posse, nos interesses dos donos das coisas do mundo. Aqui ou em outro continente. Como falamos da aldeia, pergunta-se, sem resposta pronta para lacre ou para textão: por que se um cidadão é agredido por, exemplo, por um representante do estado, como acontece com alguma frequência com a polícia, a repercussão natural é dar espaço à vítima, exibir as imagens, entrevistar advogados, testemunhas, lideranças negras e lhe mostrar o rosto, lhe dar voz e tratá-lo pelo nome? 

Todos sabemos como a emissora dona da festa tratou o caso: sem nome, sem imagens. Roberto era apenas “homem diz ter sido agredido”; “um publicitário acusou…”. A mistura do jornalismo com negócios, produtos, marcas sempre existiu. É a publicidade que financia os veículos, mas o jornalismo pode ser melhor que isso. É constrangedor ver jornalistas, fazendo malabarismos para não abordar um caso que, não envolvesse marcas dos donos, seria capa de impresso, objeto de chamada e de horas de tela no telejornal. O discurso publicitário sobre inclusão, diversidade e antirracismo é bonito, urgente e deve ser mantido. Mas o rei está nu e aquilo que se promove, à tarde, com jingles e referências à ancestralidade da line up, é jogado, à noite, no lixo de um banheiro químico de festival. 

E o jornalismo da casa finge não ter o nome nem as imagens da vítima, que, se tivesse sido agredida em evento promovido pela concorrência, estaria manchetando a crueldade da elite da outra rua da Roma Negra. Quem é a elite que acusa a elite? É tudo espelho.