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Sexta-feira, 28 de junho de 2024

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Não verás país nenhum 

Não verás país nenhum 

Somos lagostas, que, devagarinho, somos cozidas sem nos darmos conta exatamente quando o processo que ferve a água e mata começou

Não verás país nenhum 

Foto: Reprodução - Jornal da Metropole

Por: Malu Fontes no dia 23 de junho de 2022 às 08:56

Este título dá nome a um livro distópico dos anos 80, de Ignácio de Loyola Brandão, paulista, 85 anos. A palavra romance, em português, é muito ruim para definir certas obras de ficção. Sempre deixa escapar algo de meloso que o sentido da palavra tem entre nós, dando algo de impreciso ou inadequado à ficção que trata de crueza, visceralidade, distopia ou caos. Não verás país nenhum, de 1981, tem como cenário um Brasil futurista, arrasado, sob uma engrenagem que já moeu as pessoas, deu fim a água, destruiu o meio ambiente e o futuro. 

Distopia é uma palavra sonora que até um dia desses a gente estava acostumado a associar muito mais ao cinema e à ficção científica, um nicho da indústria cultural. A vida real é assim, sem fronteira brusca, sem explicitações ou marcas delimitadas que fazem um risco no chão do tempo e avisam: aqui está, tudo mudou agora. A mudança das coisas tem um quê de suavidade, mesmo quando nos empurra para a tragédia. Nada melhor para definir isso que a água que, de fria vira morna, e de morna vira fervente e mata a lagosta na panela, nesse processo. Somos lagostas, que, devagarinho, somos cozidas sem nos darmos conta exatamente quando o processo que ferve a água e mata começou.

Passear por entre os textos e as imagens que todo dia nos explicam o Brasil é confirmar que já chegamos ao Brasil de não verás país nenhum. Numa cena, a gente vê um indigenista e um jornalista abatidos a tiros, esquartejados, queimados e enterrados porque, em resumo, denunciavam que a floresta amazônica e o que restou da população indígena brasileira estavam sendo dizimadas. Na outra cena, na sequência imediata, uma juíza a serviço do interesse público, aconselha uma criança de 11 anos, estuprada aos 10 e grávida, a esperar um pouquinho a barriga crescer para fazer a felicidade de um casal hipotético que adotaria o bebê. 

ESTUPRADOR É PAI?

A moça, cujo talento para a perversão não caberia numa ficção, por inverosimilhança, prossegue: que nome a criança daria ao bebê? Ah, e a criança acha que o pai do bebê, o estuprador, concordaria com o nome escolhido? Num mesmo diálogo, gravado, filmado, a juíza, uma mulher adulta, lúcida, graduada, especialista em leis que asseguram direitos humanos e proteção à infância, naturaliza o assombro inimaginável que é uma criança ser mãe e um estuprador ser pai. 

O brasileiro virou isso, um povo que há tempos vem sendo adestrado para, sem ver futuro, assistir, uma após outra, cenas ininterruptas da barbárie em série, num fluxo tão vertiginoso que a memória não faz retenção. Que dia mesmo foi aquele que policiais transformaram o porta-malas de uma viatura em câmara de gás para matar um homem com esquizofrenia? Quando foi mesmo que vários homens normais mataram a pauladas um congolês numa barraca de praia na cidade maravilhosa? Quando foi que o Brasil do futuro virou isso?