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A Páscoa que poucos conhecem: celebração tem diferentes versões que atravessam culturas, crenças e séculos
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A Páscoa que poucos conhecem: celebração tem diferentes versões que atravessam culturas, crenças e séculos
Em 2025, a Páscoa cristã e a festividade judaica de Pessach (ou Páscoa judaica), que celebra a libertação dos hebreus da escravidão no Egito, vão coincidir no dia 20 de abril

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 17 de abril de 2025
Mais uma Páscoa chega e, com ela, o mesmo roteiro: reportagem sobre o preço do peixe, filas no supermercado, prateleiras cheias de ovos com brindes que custam quase o preço de um celular. Na TV, no rádio, nas redes, o debate gira em torno do que comer — como se esse fosse o verdadeiro milagre da data.
Enquanto o povo corre atrás do ovo de chocolate…
Mas, no meio da correria por um bom bacalhau, pouca gente se pergunta: afinal, o que é mesmo a Páscoa? De onde vêm esses coelhos que não botam ovos? E por que essa festa sempre soa como algo exclusivamente cristão, quando, na verdade, é bem mais antiga e diversa do que imaginamos? A resposta, como quase tudo na história humana, é: depende. E pra entender melhor, basta olhar pro céu. Literalmente.
Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Uma data que muda
A Páscoa cristã é uma celebração móvel. Sua data não é fixa como o Natal, por exemplo, e pode variar entre março e abril. O motivo está no céu — mais precisamente, na lua. Desde o Concílio de Niceia, em 325 d.C., ficou decidido que ela seria celebrada no primeiro domingo depois da primeira lua cheia que ocorre após o equinócio da primavera (no hemisfério norte, por volta de 21 de março).
"É a mesma lua que brilhava no céu na libertação do povo de Israel do Egito, que brilhava no céu quando Jesus foi julgado, crucificado e morto. Então, olhe para o céu: haverá lua cheia nos próximos dias", explica o padre Manoel Oliveira Filho, da Paróquia Ascensão do Senhor, em entrevista à Metropole.
Coincidência de calendário
Em 2025, a Páscoa cristã será celebrada no dia 20 de abril. E, curiosamente, a festividade judaica de Pessach (ou Páscoa judaica), que celebra a libertação dos hebreus da escravidão no Egito, também ocorrerá entre os dias 12 e 20 de abril. A coincidência não é frequente, já que o Pessach segue o calendário hebraico, enquanto a Páscoa cristã segue uma fórmula baseada no calendário gregoriano e no ciclo lunar. Quando elas se alinham no tempo, é possível refletir sobre as raízes comuns entre as tradições, embora cada uma atribua significados próprios à celebração.
O profano que precede o sagrado
Aliás, falando em datas móveis: você já se perguntou por que o Carnaval também muda de ano pra ano? Pois é. Ele acontece sempre antes da Quarta-feira de Cinzas — dia que marca o início da Quaresma, os 40 dias de preparação para a Páscoa no calendário cristão. Ou seja, antes da ressurreição, tem folia. O profano precede o sagrado. E o Brasil, com toda sua contradição poética, consegue rir alto na segunda e jejuar na quarta.
Judaísmo: libertação, memória e identidade
A origem da Páscoa está no judaísmo, onde a festa é chamada de Pêssach (passagem em hebraico). Ela comemora a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito, conforme narrado no livro do Êxodo. Durante o Sêder, ceia ritualística que marca o início da celebração, são consumidos alimentos simbólicos como o pão sem fermento (matzá), ervas amargas e vinho — tudo com significados ligados à resistência, à fé e à identidade do povo judeu.
Nada de chocolate ou coelhinho. Aqui, a celebração é uma aula de história contada à mesa.
Cristianismo: ressignificando a passagem
Séculos depois, o cristianismo se apropriou da Páscoa judaica. A data passou a simbolizar a ressurreição de Jesus Cristo, ocorrida — segundo os Evangelhos — justamente durante a celebração da Pêssach. A Semana Santa se tornou um dos pilares do calendário cristão: do Domingo de Ramos à Sexta-feira da Paixão, culminando com o Domingo de Páscoa. "A Páscoa segue os passos de Jesus. Tudo tem um sentido", explica o padre. Manoel Oliveira Filho.
Católicos enfatizam o sacrifício, protestantes celebram a vitória sobre a morte, e cristãos ortodoxos têm um calendário próprio: seguem o calendário juliano, o que faz com que, na maioria dos anos, sua Páscoa seja comemorada depois da data ocidental. Na liturgia ortodoxa, o tempo de preparação é mais intenso e a "Páscoa das Páscoas" é a celebração mais grandiosa do ano — marcada por longas vigílias e procissões.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
De onde vêm os ovos?
Muito antes da ressurreição ser celebrada, povos germânicos e celtas já festejavam o fim do inverno e a chegada da primavera. Era época de homenagear Ostara (ou Eostre), deusa da fertilidade e do renascimento. Ovos e coelhos, símbolos de vida nova, eram abundantes nos rituais. Não à toa, o nome "Easter", usado em inglês para designar a Páscoa, deriva dessa divindade pagã.
“O cristianismo, em sua expansão, incorporou muitos elementos simbólicos dos povos que encontrou. Era mais fácil converter quando a festa já estava montada”, comenta Lucas Araújo, historiador pela UFBA. “Os coelhos e ovos de chocolate são uma herança pagã embrulhada em papel alumínio”.
E, no fim das contas, o que celebramos?
A resposta não cabe em um ovo. A Páscoa, em suas muitas versões, é sempre um rito de passagem, de Pêssach: da escravidão à liberdade, da morte à vida, do frio à fertilidade. Mas, ao reduzir tudo ao preço do bacalhau ou ao peso do chocolate, perdemos o essencial: o sentido de transformar-se.
E talvez seja isso que mais precisamos lembrar — especialmente em tempos em que renascer parece cada vez mais urgente.
“É curioso como, ao longo da história, as sociedades sempre encontraram formas de ritualizar o recomeço”, explica o historiador Lucas Araújo. “A Páscoa não nasce com o cristianismo. Antes disso, temos o Pêssach judaico, que já era, por si só, uma narrativa poderosa de libertação. E antes ainda, rituais pagãos que celebravam o retorno da fertilidade e da vida após o inverno. Ou seja: renascer é uma obsessão humana. A cada época, a cada cultura, esse desejo toma um nome diferente”.
A fé também é digital
Se antes a fé era vivida apenas no templo ou na missa de domingo, hoje ela também habita as telas. Nas últimas madrugadas, uma live às 4h reuniu cerca de um milhão de famílias na internet - tudo em nome da Quaresma, o período de preparação para a Páscoa. Esse é só um exemplo de como a espiritualidade ganhou novos púlpitos: celulares, computadores e vídeos no TikTok. Fiéis, inclusive muitos jovens, rezando, chorando, jejuando, tudo em tempo real, com comentários, emojis e corações flutuando na tela. Uma espécie de vigília digital, onde o sagrado encontra o algoritmo. Talvez o milagre moderno seja esse: encontrar transcendência no meio da notificação.
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