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Sem transparência e a reaproveitamento, pais denunciam esquema de venda de livros em colégios particulares de Salvador

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Sem transparência e a reaproveitamento, pais denunciam esquema de venda de livros em colégios particulares de Salvador

Pais descobriram que mesmo conjunto de livro era vendido em colégios da mesma rede em outro estado por metade do preço

Sem transparência e a reaproveitamento, pais denunciam esquema de venda de livros em colégios particulares de Salvador

Foto: Divulgação

Por: Daniela Gonzalez no dia 13 de fevereiro de 2025 às 08:51

Atualizado: no dia 13 de fevereiro de 2025 às 08:58

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 13 de fevereiro de 2025

Pais indignados denunciam que algumas escolas particulares de Salvador se transformaram em verdadeiras máquinas de lucro. Nessas instituições, os livros chegam a custar até R$ 8 mil e vêm acompanhados de uma plataforma digital. Mas não se engane: essa tecnologia não é um bônus, e sim uma imposição.

Pacote completo
Aqui não existe escolha. Os pais não podem comprar apenas um livro de português ou matemática. O material só é vendido em um kit fechado, e sempre por meio da escola. Lembra da época em que dava para comprar livros usados ou escolher a fornecedora que cabia no bolso? Esqueça. Agora, ou paga pelo pacote inteiro ou seu filho que lute.
A advogada Priscylla Just, mãe de um aluno do Colégio São Paulo, sentiu isso na pele e no bolso. Segundo ela, os problemas começaram em 2022, quando a imposição do material escolar passou a ser questionada. “Só posso comprar no colégio e nem sei o preço de cada livro. Falta transparência. A imposição desse valor de material didático, como está sendo colocada, é uma barreira na educação”, critica.

Sistema de vendas
A explicação está no modelo de negócio. As escolas não vendem apenas livros, e sim um 'Sistema de Ensino' – um pacote fechado. E não adianta tentar fugir: o contrato deixa claro que a reutilização é proibida. “É proibida a reutilização do Material Didático mediante comercialização paralela, como em sebos, bazares e/ou brechós. A venda do material por qualquer terceiro, que não seja a editora, será considerada violação aos direitos autorais”, diz o documento.

A peso de ouro
Na turma do filho de Priscylla, dos 32 alunos, 14 compraram o material novo e têm acesso à plataforma digital. Os demais, que tentaram reaproveitar livros antigos, não só foram privados do acesso, como descobriram que até os conteúdos mudaram. “Já na primeira atividade, vimos que os conteúdos eram diferentes”, denuncia Priscylla.
Se o preço já parece absurdo, espere até ver a diferença entre estados. Pais que pesquisaram descobriram que o mesmo conjunto de livros da editora custa R$ 4.024 em Salvador, enquanto em escolas de Brasília sai por R$ 2.077. 

Atropelando a lei com tudo
E o pior: essa prática fere a lei municipal que obriga as escolas particulares de Salvador a manter, por três anos, uma lista fixa de materiais escolares. Diante dessa farra, o Ministério Público da Bahia já abriu investigação, com Procon e Codecon de olho no caso.

Pressão em sala de aula
Outra mãe do Colégio São Paulo, Alessandra Rocha relata que os alunos estão sendo pressionados em sala de aula a comprar o material novo para terem acesso à plataforma digital. Segundo ela, “os professores informam às crianças que haverá atividades na plataforma com valor na pontuação”. Ou seja, quem não tiver pode ser prejudicado na nota.

Foto: Acervo pessoal

Invasão dos grandes grupos
O Colégio São Paulo faz parte da rede Inspira, assim como o Anchieta e o Portinari. Segunda maior rede de educação básica do país, o grupo controla 104 escolas e recebeu um investimento de R$ 1 bilhão de um fundo americano. Parece um ótimo negócio – para eles. Para os pais, nem tanto. Eunice da Fonseca, mãe de um aluno do Colégio Anchieta, conta que o sistema não dá alternativas. “Se meu filho perde um livro de matemática, não posso comprar só ele. Tenho que comprar o kit inteiro de novo”, lamenta. Já Juliana Souza conta que sua filha estuda no Colégio Antônio Vieira e que, a cada ano, se preocupa com os reajustes ano após ano nos materiais didáticos: “Às vezes, penso como vou conseguir manter”.

“Mal-entendido”
Mas a prática não é exclusiva da rede. Em dezembro de 2024, o Ministério Público da Bahia chegou a ajuizar uma ação contra o Centro Educacional Villa Lobos e a Somos Sistemas de Ensino por suposta venda casada de material didático. Segundo o MP, a escola teria condicionado a entrega de livros físicos à aquisição obrigatória da plataforma digital da Somos, prática considerada abusiva. A ação solicita que o Villa ofereça a comercialização separada dos materiais e apresente um contrato mais transparente aos responsáveis.

O caso segue em avaliação pelo Poder Judiciário, mas o colégio nega qualquer irregularidade e defende que tudo não passou de um mal-entendido, já que, segundo o grupo, “os pais contrataram a plataforma diretamente junto à Somos e os livros físicos foram objeto de doação da Editora”. "No ano letivo de 2024, já encerrado, a escola indicou a plataforma Par como material didático, a ser adquirido diretamente pelos responsáveis junto à Somos. Além disso, os livros físicos da Coleção Telaris foram doados pela própria editora, conforme nota fiscal apresentada ao Ministério Público. Dessa forma, não há fundamento para alegações de venda casada, que ocorre apenas quando a compra de um produto ou serviço é imposta como condição para a aquisição de outro", diz o colégio em nota, acrescentando que tem incorporado a Cultura Digital "de forma responsável e gradativa em seu Projeto Pedagógico" e "em conjunto com o uso de livros físicos, sempre com supervisão pedagógica e diálogo com as famílias".

Foto: Divulgação

Educação ou extorsão?
No fim das contas, as suspeitas giram em torno sempre de venda casada ou até de cartel – um esquema para garantir preços abusivos e impedir qualquer concorrência. O vereador Daniel Alves, autor da Lei Municipal nº 9.713/2023, explica que a medida surgiu da insatisfação de pais de alunos com a escalada nos custos dos materiais escolares em Salvador.

"Os pais foram ao Ministério Público há dois anos para denunciar o aumento abusivo dos preços, que praticamente dobraram quando a Rede Inspira comprou colégios como São Paulo,  Anchieta e o Portinari. Além disso, os alunos eram obrigados a comprar material novo todo ano, mesmo quando praticamente não havia mudanças. Muitas vezes, só mudava a capa ou um desenho, mas as escolas justificavam a troca anual. Ao pesquisar para criar a lei, descobrimos que as escolas chegam a ficar com até 50% do valor dos módulos, usando essa prática para aumentar seus lucros", afirmou o vereador. Segundo ele, a nova regra visa garantir que o material permaneça o mesmo por três anos, permitindo que os estudantes reutilizem ou negociem livros e apostilas, aliviando o impacto financeiro para as famílias.

Casamento compulsório
Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-BA, o advogado Victor Graça explica que a prática de venda casada pode ocorrer quando uma escola condiciona a aquisição de livros à compra de uma plataforma digital, o que pode ferir o Código de Defesa do Consumidor. Ele não tem dúvidas que, em alguns casos, a recomendação de materiais pode ultrapassar a necessidade pedagógica e ser usada para aumentar lucros, indicando livros não necessariamente essenciais ou supostamente atualizados com o objetivo de gerar novas compras. Para evitar abusos, os pais devem ter a liberdade de adquirir os livros separadamente e pesquisar preços em diferentes locais. Caso contrário, a prática pode ser considerada ilegal.

Sobre a formação de cartel, exige uma investigação profunda. Segundo Victor Graça, há indícios quando diferentes escolas exigem materiais do mesmo fornecedor com preços semelhantes. “O CADE [Conselho Administrativo de Defesa Econômica] pode investigar, pedir explicações às escolas e, caso identifique infração, aplicar sanções, como multas proporcionais ao faturamento”, explica.

Estão de olho
O Procon notificou algumas escolas em janeiro, após denúncias de pais sobre possíveis abusos na venda de material didático. O Codecon, por sua vez, realizou a primeira fase da Operação Escola, solicitando listas de materiais e documentos para apurar irregularidades. O ano letivo já iniciou, mas o órgão ainda aguarda o envio completo dessas informações e reforça que consumidores devem formalizar denúncias para que sejam devidamente investigadas.

Já o Ministério Público da Bahia abriu procedimentos para investigar supostas práticas abusivas, como a venda casada de material pelo Colégio São Paulo e o alto custo dos livros. Representações foram recebidas em 2023 e 2024. O Colégio São Paulo já foi notificado e uma audiência extrajudicial está agendada. O MP também analisa denúncias recentes contra o Colégio Anchieta, que estaria impedindo a compra do material em outros locais.

O que dizem as escolas
Em nota ao Jornal Metropole, os Colégios São Paulo, Anchieta e Portinari negam a prática de venda casada e afirmam seguir as normas dos órgãos reguladores. As escolas destacam que, desde a matrícula, os responsáveis têm acesso a informações sobre as regras, a metodologia e os materiais adotados, que incluem também plataformas digitais e recursos pedagógicos integrados ao sistema de ensino. A adesão a esse sistema faz, segundo nota das instituições, parte do contrato firmado no momento da matrícula.

Já o Colégio Antônio Vieira afirma que segue a legislação vigente e está sempre à disposição das famílias para esclarecer dúvidas sobre o uso da plataforma digital, além de, se necessário, oferecer uma alternativa.