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Após 14 anos de abandono, orla de Salvador passa por requalificação que volta a preocupar comerciantes
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Após 14 anos de abandono, orla de Salvador passa por requalificação que volta a preocupar comerciantes
Antes espaço democrático de lazer, turismo e renda, orla de Salvador enfrentou 14 anos sem alternativa para comerciantes e banhistas
Foto: Metropress/Danilo Puridade
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 14 de novembro de 2024
Não precisa puxar muito da memória para recordar que as praias eram a vida de Salvador. Opção de lazer democrático, elas atraíam gente de todas as classes, idades e cantos da cidade. Os ônibus lotados e carros disputando milímetros em estacionamentos já davam ideia dos frenesi que tomava conta da faixa de areia. Agora ou pelo menos nos últimos 15 anos, se há algo que todo soteropolitano sabe bem é que a orla da capital, que deveria continuar sendo esse espaço vibrante, de lazer, turismo e renda, passou mais de uma década em estado de abandono, entre projetos frustrados e decisões questionáveis.
Se antes, havia até quem escolhesse passear pelas praias de Salvador como forma de medir sua popularidade, hoje a região mais ao norte da orla soteropolitana, como Boca do Rio, Praia dos Artistas, Jaguaribe, Pituaçu e Patamares, perdeu o brilho e as condições mínimas para sua função social na cidade. Tudo isso foi retirado com trator, escavadeira e ao som do desespero de barraqueiros e trabalhadores, em 2010, após uma decisão judicial que determinou a remoção das barracas de praia, para ordenar o uso da faixa de areia.
Acervo/Metropress
Barraca abaixo
Os olhos da Justiça se voltaram para as barracas de praia ainda em 2006, na gestão de João Henrique, quando o então secretário de Serviços Públicos, Arnando Lessa - hoje vereador pelo PT -, deu início a um projeto de 50 novas estruturas de alvenaria na faixa de areia, com apoio das cervejarias Ambev e a Schincariol. O Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) logo apontou uma série de irregularidades no processo e o Judiciário embargou as construções, mesmo sob protestos do então prefeito, que afirmava que as estruturas só seriam destruídas por cima do seu cadáver. Elas foram e, junto com a queda, veio uma crise na gestão municipal e uma preocupação com as barracas antigas, de comerciantes. Não tardou muito para que a Justiça determinasse também a demolição de todos os equipamentos na faixa de areia soteropolitana.
Nadou e morreu na praia
Praias fotogênicas, com águas mornas e o calor de Salvador durante todo o ano. A natureza entregou quase tudo de mão beijada para que a orla soteropolitana continuasse sendo a vida da cidade. Mas a estrutura oferecida caminhava no sentido contrário: zero opções de descanso, banheiros e espaços de alimentação. Projetos prometendo revitalização chegaram a aparecer, como o de 2015, na gestão de ACM Neto, garantindo mudanças em Itapuã, Piatã e Jardim de Alah. Mas os quiosques padronizados de vidro e alvenaria, lembrando playground de condomínios no Corredor da Vitória, foram tão bem recebidos quanto uma recepção em um consultório médico: frios e distantes. Era a estética deslocada, o modelo desconectado do comportamento do soteropolitano e as reclamações dos comerciantes.
O próprio Jornal Metropole chegou a trazer nessas mesmas páginas questionamentos de ex-barraqueiros sobre quem teve prioridade para alugar os pontos e as questões contratuais com os permissionários. Agora, depois de 14 anos sem as barracas e com promessas frustradas, um novo projeto, já em execução, leva de novo tratores, escavadeiras e preocupação aos comerciantes da orla.
Acervo/Metropress
Mirando em Copacabana e acertando em Camboriú
O roteiro ganhou novos capítulos em 2021, com um novo projeto que segue em andamento, prometendo requalificar a orla entre Boca do Rio e Pituaçu, com ciclovia, quadras, viaduto para pedestres, calçadão e pontos de comércio. A fórmula? A mesma: concessão dos quiosques e tendas para uma empresa privada. Inspirado em modelos de cidades como o Rio de Janeiro, a proposta prevê instalações padronizadas, com 34 quiosques e 70 tendas sob gestão de uma concessionária por 30 anos. A empresa privada, além da gestão e aluguel dos locais de venda, seria responsável pela instalação de iluminação, áreas de convivência e comodidades. Além do concreto dando o tom acinzentado ao novo cenário, o que chama atenção são os novos quiosques do projeto da Fundação Mário Leal Ferreira, a mesma responsável por requalificações controversas como a do Aquidabã. Se em um projeto o máximo foi uma simulação de playground do Corredor da Vitória, no outro o que se oferece são espécies de caixotes fechados de madeira, se assemelhando a estábulos em plena orla.
Todo o investimento foi feito pela prefeitura, mas a gestão ficará a cargo da concessionária a ser escolhida. O edital desta seleção até menciona a preferência pela continuidade dos vendedores ambulantes cadastrados e chega a citar que, “caso não seja possível o engajamento de parte dos vendedores ambulantes, por incompatibilidade com a estratégia de negócio da concessionária, estes deverão ser priorizados nos processos seletivos para contratação de funcionários” - ou seja, deixariam seus próprios negócios para se tornarem empregados. Ainda o documento não traz muitos detalhes ou garantias de que isso realmente seria cumprido. Na minuta de contrato com a futura concessionária, a prefeitura lista apenas 40 comerciantes na Boca do Rio e 20 em Pituaçu, número muito aquém do que realmente está distribuído nos 3,5 mil metros de extensão na área a ser requalificada. Por isso, a dúvida persiste: quem, de fato, poderá desfrutar desse novo espaço gerido pela concessionária?
Fora da faixa de areia
Presidente da Associação dos Ambulantes de Salvador e Região Metropolitana (ASFAERP), Marcos Luiz conta que, há alguns anos, a frente principal da luta da categoria é pela permissão para a comercializar os petiscos na faixa de areia, “porque só de bebida os trabalhadores não vencem”. Agora com o novo projeto de requalificação, a associação vem também negociando com a prefeitura a garantia de preferência para ambulantes da região e barraqueiros que perderam sua fonte de renda em 2010, no aluguel dos novos quiosques e tendas.
“Mas o que eu vejo é que uma grande parte dos nossos companheiros não desejam participar disso. Eles acreditam que na faixa de areia estariam melhor, porque entendem que ficar fora da área não vai dar nenhum resultado. Estamos deixando a critério dos próprios companheiros, mas pedindo prioridade para que os ambulantes primeiramente sejam ouvidos, uma vez que não quiserem, aí a empresa pode fazer o seu trabalho de visitação para aqueles que querem”, relata Marcos Luiz, se referindo justamente ao modelo de orla desconectado do comportamento do soteropolitano, que fez com que os primeiros quiosques não fossem para frente.
A história de Domingas Conceição é uma das que foi impactada pelos tratores e escavadeiras de 2010 e ainda aguarda uma alternativa favorável aos trabalhadores da orla. Ela era garçonete de uma barraca na terceira ponte, em Piatã, e agora trabalha como ambulante na região. “Nos tornamos pessoas desocupadas. Por mais que queiramos melhorar de vida, não temos área de trabalho, porque toda aquela orla, repleta de gente o ano inteiro, foi destruída sem nenhum estudo ou avaliação de impacto. E o impacto, claro, foi prejudicial às comunidades”, afirma.
Metropress/Danilo Puridade
Orla pra quem?
Nas projeções da prefeitura, o projeto da Fundação Mário Leal Ferreira traz simulações de pessoas praticando atividade física e meio a muita área verde. A realidade, no entanto, ainda é de muito concreto e dúvida se a aguardada revitalização é mesmo para todos, ou estamos, mais uma vez, reformando a cidade para uma parte dela? Entre tapumes e faixas de aviso, a pergunta fica no ar: ao fim das contas, é se vai sobrar espaço para os comerciantes e para o povo, ou se estamos apenas trocando o antigo descaso por um acesso mais restrito, porém bonito? O antropólogo Roberto Costa Pinho é duro em sua crítica: “quem é que realmente vai poder ocupar esse novo espaço? A gente está criando uma orla democrática ou só decorando a cidade para quem vem de fora? Com uma concessionária privada de 30 anos para explorar o local, a pergunta dos moradores é se vão poder pisar na areia, comprar uma água ou uma bebida sem enfrentar a privatização dos locais de compra?”, aponta.
Costa Pinho cita, para efeito de comparação, o Carnaval de Salvador. “Colocaram aqueles camarotes, mas só para quem pode pagar. Para o povo, sobrou carregar isopor e vender cerveja na areia. A cidade vai virando um cenário, mas só para quem pode pagar por esse cenário”. O exemplo do antropólogo faz lembrar a orla da Boca do Rio vem sendo apontada, cada vez mais incisivamente, como possível novo circuito da folia soteropolitana, o que tem aumentado a especulação imobiliária na região e levantado a “necessidade de prepará-la” para turista ver.
Obras a todo vapor
Enquanto comerciantes e banhistas seguem buscando respostas sobre a proposta para a nova orla, a obra segue a todo vapor, com trechos já dando as caras e prometendo um visual “novo em folha”. Segundo a prefeitura, a obra de requalificação da Orla de Pituaçu, que abrange o trecho da ponte Rio das Pedras (imediações do antigo Clube do Bahia) até a terceira ponte (imediações da Av. Professor Pinto de Aguiar), deve ser entregue ainda neste ano. Já o trecho que segue dali até o Sesc tem previsão de entrega no primeiro semestre de 2025. A prefeitura chegou até a publicar uma consulta pública para que a comunidade fizesse sugestões sobre a concessão dos quiosques. A esmagadora maioria das questões levantadas foi justamente sobre a prioridade aos permissionários.
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