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Sagrado sob ameaça: Espaços de devoção e culto do povo de santo são colocados em risco na cidade

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Sagrado sob ameaça: Espaços de devoção e culto do povo de santo são colocados em risco na cidade

Terreiro Casa Branca, Pedra de Xangô, Abaeté e agora a Gruta de Obaluayê são alguns dos espaços já ameaçados

Sagrado sob ameaça: Espaços de devoção e culto do povo de santo são colocados em risco na cidade

Foto: Metropress/Fernanda Meneses

Por: Laisa Gama e Mariana Bamberg no dia 18 de julho de 2024 às 00:00

Atualizado: no dia 18 de julho de 2024 às 10:04

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 18 de julho de 2024

A história de Salvador já expõe isso há tempo: sobra até para o Sagrado quando ele calha de atravessar o caminho da negligência dos poderes públicos e da ferocidade da especulação imobiliária. Exemplos não faltam, nem recentes, nem antigos e nem velados, nem escandalosos.

A Igreja da Sé da Bahia, primeira diocese do Brasil, inventou de se meter no caminho do “progresso e modernização” (leia aqui literalmente a passagem de um bonde). Mas onde já se viu? Em terras como Salvador não se impede a passagem do bonde que insistem em camuflar como desenvolvimento. Acabou sendo vendida por 300 contos de réis pelo próprio arcebispo e em 1933 foi demolida para dar espaço à construção de um terminal. Mais de 90 anos depois, sem bonde e sem a Igreja da Sé da Bahia, Salvador repete os mesmos trilhos fincados no desprezo do poder público e no poder das grandes construtoras e incorporadoras.

Metropress/Fernanda Meneses

De gruta a pedra no sapato

O intrometido da vez é um espaço considerado sagrado para o povo de santo: a Gruta de Obaluayê, um santuário que há mais de cinco décadas reúne o sincretismo religioso. Lá, seguidores do Candomblé, Umbanda, católicos e simpatizantes se encontram em torno do culto aos Orixás e santos curadores, como São Lázaro. Sua localização faz parte do clima místico e sagrado: de frente para o mar de Ondina. Endereço perfeito, se não fosse exatamente aos fundos de um famoso hotel, até então abandonado, em pleno circuito do Carnaval de Salvador. A gruta se tornou então uma pedra - daquelas que incomodam no sapato.

O incômodo começou depois que a construtora pernambucana Moura Dubeux arrematou o imóvel em um leilão com lance mínimo de R$ 82 milhões. A empresa é a mesma que comprou também o Hotel Pestana (antigo cinco estrelas Le Meridien) e ergueu, a poucos metros do Othon, os três espigões na orla de Ondina, onde pelo menos 70 proprietários denunciaram que seus imóveis tiveram anotações em suas matrículas, relacionando a um litígio da construtora com os antigos donos do terreno. O projeto para o hotel vizinho à gruta é um empreendimento de luxo que receberá um resort residencial e comercial. Há a previsão da demolição de parte da estrutura, cuja licença está em análise final junto à Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur).

Não é preciso interferência do Sagrado para que os frequentadores da gruta demonstrem preocupação com o projeto. É por isso que a Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA) tem reforçado o pedido de tombamento do espaço à Fundação Gregório de Mattos. Presidente da entidade, Leonel Monteiro explica o receio do grupo.

“Nossa preocupação, em primeiro lugar, é de que obras de alguma forma possam prejudicar a frágil estrutura da Gruta de Obaluaê. Segundo, que o poder econômico, que o empreendimento acabe extinguindo o espaço. Porque sabemos que o capital historicamente vem contribuindo em casos de falta de respeito com as comunidades tradicionais. A gente tem como exemplo a Pedra de Xangô, que na época que foi construída aquela Avenida, não se levou em conta que a pedra tava ali, né?”, citou.

Ameaças de concreto

A Pedra de Xangô, citada por Leonel, é mais um dos locais sagrados na lista sob ameaça. Para os adeptos das religiões de matriz afro- -brasileira, a natureza é sagrada e a pedra de 8 metros de altura é um marco na história de resistência daqueles que foram escravizados em Salvador. Apesar de tudo isso, só depois de 17 anos de luta que foi criado o Parque Pedra de Xangô, hoje área de proteção ambiental municipal, mas que vira e mexe é alvo de denúncias de sujeira e falta de segurança.

Com águas escuras e rodeada de areia branca, como canta Dorival Caymmi, a Lagoa do Abaeté também não fica de fora dessa lista nada divina. Tradicional local onde o povo de santo realiza seus rituais, ela se tornou cenário de invasões, lixo, descuidadas obras do próprio poder público e um disputa religiosa entre os adeptos das religiões de matris africana e evengélicos - com direito a oferendas destruídas e placas ameaçadoras pelo caminho. Tudo ganhou outra proporção quando a prefeitura anunciou o investimento de R$ 5 milhões em um contestado projeto de urbanização na região usada por uma instituição evangélica.

No Engenho Velho da Federação, não deixaram passar nem o terreiro mais antigo do Brasil, o Casa Branca. Simplesmente um imóvel de quatro pavimentos foi erguido irregularmente por um vizinho, a poucos metros do muro do terreiro, ameaçando sua estrutura. Apesar de já ser tombado a mais de quatro décadas, ainda assim levou-se 5 anos para que finalmente pelo menos o último andar do prédio fosse destruído.

Tombar para não cair

Mesmo diante de exemplos como o do Terreiro Casa Branca, é justamente ao tombamento que têm se amarrado a AFA para tentar proteger a gruta. A Fundação Gregório de Matos, reconhecendo a importância histórica e cultural e a necessidade da preservação do espaço inclusive para o combate ao racismo e intolerância religiosa, vem atuando neste sentido. Ao Jornal Metropole, o órgão informou que já solicitou à Sedur informações sobre o perímetro estabelecido em alvará para as obras da Moura Dubeux. A construtora também foi procurada pela reportagem e informou que o projeto não prevê intervenção na parte inferior do imóvel, próxima à praia e à gruta. Já a Sedur se limitou a afirmar que as autorizações das obras foram concedidas com base nas legislações vigentes.

O que Leonel e outros críticos ao tratamento dado ao Terreiro Casa Branca, ao Abaeté, à Pedra de Xangô e até à Igreja da Sé da Bahia cobram não é frear o desenvolvimento, mas sim blindar espaços históricos e sagrados, que, muito mais do que mega empreendimentos e construções irregulares, são patrimônios da cidade e de sua população.“Não estamos dizendo que o empreendimento não é importante para a cidade. Deve gerar emprego, mas que isso também venha de uma forma positiva, para a preservação daquele espaço”, resumiu o presidente da AFA.