A rainha na lama
O mundo dos desvalidos reagiu às lágrimas de comoção da rainha atirando-lhe lama no rosto
Foto: Reprodução
Quando todas as esperanças no futuro que já chegou parecem ter fracassado, o ódio é o que resta. Se foi raiva justa, desespero de quem perdeu tudo, manifestação orquestrada pela direita espanhola ou tudo misturado, pouco importa: a lama atirada por manifestantes na cara do rei e da rainha da Espanha, durante visita das autoridades à destruição causada pelas tempestades na região de Valência, com cerca de 220 mortos, foi real, sem trocadilhos.
Em Paiporta, uma das cidades valencianas mais afetadas pela destruição, pouco importava que o rei Felipe VI e a rainha Letizia tivessem tirado os sapatos sofisticados do Palácio Real para meter os pés na lama e ver e ouvir de perto os relatos trágicos de vítimas e sobreviventes. O mundo dos desvalidos reagiu às lágrimas de comoção da rainha atirando-lhe lama no rosto e nas roupas bem cortadas. Fez o mesmo com o rei, gerando uma das imagens já mais simbólicas deste ano, da fúria popular e do mundo como ele tem sido colapsando.
As cenas são uma amostra etnográfica riquíssima de sentidos. São emblemáticas, principalmente, quando comparadas às imagens perfeitas que se repetem semanalmente nas páginas da Hola, a revista espanhola que é praticamente um diário oficial do mundo de aparências impecáveis dos palácios reais, mesmo quando relata os bastidores cheios de traição, amantes, desvio de dinheiro, escândalos e fofocas em torno do folhetim biográfico do rei emérito Juan Carlos e dos constrangimentos da ‘reina Sofia de Espanha’.
Miseráveis e 'assassinos'
As imagens de Letizia fashionista nas páginas da Hola e, agora, enlameada e chorosa nos destaques das redes sociais do mudo parecem pequenos prenúncios do mundo rico craquelando, numa aparente metáfora da guilhotina francesa que sacrificou Maria Antonieta, na Revolução Francesa. As revoluções do presente são efêmeras, vulgares e feitas tanto de tinta barata sobre telas seculares nos museus como de lama de chuva.
Talvez nunca leiamos nada parecido, mas em tempos de autoficção, não seria nada tedioso ler, em primeira pessoa, o relato das impressões do rei e da rainha, sob os lençóis de seda do palácio, sobre o dia em que os miseráveis lhes encharcaram de lama aos gritos de ‘assassinos’ após uma chuva que, em apenas oito horas, derramou águas equivalentes às de um ano inteiro.
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