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Sábado, 27 de julho de 2024

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O barquinho, o naufrágio e a vida dos outros 

O barquinho, o naufrágio e a vida dos outros 

O futuro dos vivos sempre patina frágil na irresponsabilidade de quem nos leva de um ponto a outro e na omissão que sempre está no colo das autoridades

O barquinho, o naufrágio e a vida dos outros 

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 25 de janeiro de 2024 às 00:00

A vida é um sopro. As tragédias alheias, diferentemente das nossas, por nos lamberem de longe, nos permitem ver os fatos se desencadeando num fluxo, como nos filmes. Nos convidam a imaginar os cenários anteriores, o conjunto de circunstâncias que, num instante X, interrompeu irreversivelmente a existência de pessoas. O barco que virou na costa de Madre de Deus e matou oito pessoas, todas conhecidas entre si, algumas parentes umas das outras e todas vindo da mesma festa, é a terceira tragédia de grande dimensões na Bahia em menos de um mês, envolvendo viagens, festas e famílias inteiras. 

O ônibus que voltava de Guarajuba para Jacobina e a colisão frontal que matou 24 pessoas, todas amigas e parentes, voltando de um passeio à praia. O acidente fatal com quatro pessoas da mesma família, na BR 116, entre Poções e Planalto (BA), numa viagem de São Paulo para o interior de Sergipe. E, na noite de domingo, o desfecho trágico na Baía de Todos-os-Santos e os relatos dos cenários que antecederam a virada do barco “Gostosão FF”. O que se sabe de concreto dois dias depois do acidente é que o barco virou e todos caíram no mar. Oito morreram. Não se sabe nem mesmo quantas pessoas estavam dentro da embarcação. 

Era um barco com capacidade máxima para 10 pessoas, não tinha autorização para fazer transporte de passageiros e nada foi dito sobre a existência de coletes salva-vidas. Pelos relatos dos sobreviventes e das pessoas que, com outros barcos, ajudaram no resgate das vítimas, especula-se que entre 20 e 25 pessoas estavam a bordo. Há imagens de minutos antes do embarque, no píer, de homens brigando com troca de socos e confusão. A versão dada por sobreviventes é a de que, já dentro do barco e no mar, a briga teria recomeçado. Uma sobrevivente entrevistada diz à TV que a briga se deu entre dois casais. Outra, que o motivo da briga foi o pagamento de 10 reais, pela passagem. Não se sabe se as duas versões se complementam ou se são opostas. Mas foi a briga o que causou as mortes. 

A pior das punições 

Quem brigou e por quê, ainda não se sabe. E para quem assiste a tragédia de fora, não importa. Os fenômenos alheios se diluem no rosário de fatos com que somos bombardeados todos os dias. Mas é consenso nos depoimentos: com o reinício da briga do píer para dentro do barco, todas as pessoas correram para o mesmo ponto e a estrutura da embarcação não suportou. Virou. À noite, na escuridão e num ponto de águas profundas, o desfecho foi o que vimos. Havia gente de todas as idades, crianças inclusive. Alice, a mais nova das vítimas, tinha apenas 6 anos. A mais velha, 59. 

Um dos melhores livros sobre o luto, o relato autobiográfico da escritora Joan Didion sobre a perda do marido e da filha única,

“O ano do pensamento mágico” abre com essa epígrafe: “A vida muda rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina”. Uma festa, familiares e vizinhos entram num barco, um homem agride outro e, num instante de um dia normal, a vida de todos ali muda radicalmente. A crônica das tragédias pessoais comporta sucessivas camadas de comoção. E o futuro dos vivos sempre patina frágil na irresponsabilidade inocente de quem nos leva de um ponto a outro, no humor do briguento que senta ao nosso lado, no álcool ingerido e na omissão que sempre senta no colo das autoridades. O que fazia o barquinho “Gostosão FF” transportando sem poder mais do dobro da sua capacidade? O comandante do barco já teve a pior das punições: a filha e o neto estão entre as vítimas fatais.