
A morte do Papa na greve das redes
Agnósticos, ateus, católicos, cristãos e adeptos de todas as religiões com presença no mundo digital dificilmente passaram o dia 21 de abril sem consumir uma postagem sobre Francisco

Foto: Reprodução
O jornal O Público, de Portugal, escreveu em seu obituário de Francisco, na terça-feira, que ele foi “o Papa favorito do povo e dos ateus”. As diferenças entre ateus e agnósticos podem ser resumidas numa tese simples: ateus são pessoas que negam a existência de Deus. Os agnósticos argumentam que não têm elementos suficientes para afirmar ou negar Deus e qualquer divindade ou princípio que não se explique pela racionalidade. Os primeiros não creem, os segundos ignoram, desconhecem e duvidam.
Corta para um detalhe mundano: dias antes da morte do Papa, um grupo de celebridades e ativistas, numa ação contra os efeitos e o poder gigantesco das redes sociais, inundou seus feeds com a convocação de uma greve. A adesão consistia em ficar 24 horas sem postar ou consumir conteúdos em quaisquer redes. A ideia era que todo mundo sensível aos prejuízos causados pelas redes e seus algoritmos opacos os boicotasse durante um dia. De saída, a proposta já soava involuntariamente irônica, pelo paradoxo e pela contradição inerente à ideia, uma coisa meio metalinguística sem nexo.
Como assim usar as próprias redes, ganhar likes e reposts na véspera, propondo aos seguidores adesão a uma reação de protesto e boicote contra elas, classificadas no movimento como instrumentos tecnológicos que fazem mal, alienam, viciam, são tóxicas etc. e tals? Como a vida é real e de viés, a dimensão da realidade se impôs aos potenciais grevistas de modo avassalador e, perdão, irônico, apesar de trágico: o dia anunciado para as 24 horas off-line das redes começou com elas, as redes, todas, assim como todos os braços das big techs, anunciando a morte de uma autoridade com relevância e alcance suficientes para gerar engajamento no mundo inteiro, a do Papa Francisco.
Black Mirror
Agnósticos, ateus, católicos, cristãos e adeptos de todas as religiões com alguma presença no mundo digital dificilmente passaram o dia 21 de abril sem consumir uma postagem, ou um print que fosse, de algum conteúdo relacionado a Francisco, sua morte, seu legado e todas as derivações do acontecimento, sucessão incluída. E sejamos agnósticos, ateus, ingênuos, cínicos ou pragmáticos, uma pergunta racional se interpõe à convocação do boicote às redes por 24 horas.
Qual a dádiva decorrente do boicote, para quem o propõe, usando, é preciso repetir, como o próprio veículo de convocação as redes que se pretende combater? E quais foram as métricas propostas e usadas para a aferição do sucesso ou do fracasso da operação detox digital? Seja lá o tamanho do gráfico da mensuração, da adesão ou do fracasso do advento, Francisco foi e continuará sendo tão generoso que poderá ser referenciado para explicá-lo ou relativizá-lo. O resto é Black Mirror, que está com temporada nova e nunca decepciona.
📲 Clique aqui para fazer parte do novo canal da Metropole no WhatsApp.