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Gigante do tabaco lança ofensiva para regulamentar e liberar a venda de cigarros eletrônicos no Brasil
BAT Brasil, dona das Souza cruz, se vale de toda sorte de estratégia: mobilizar a opinião pública, lançar mão de dados científicos que parecem feitos sob medida e angariar apoio no Congresso Nacional
Foto: Agência Brasil/Joedson Alves
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 10 de abril de 2025
Vape, vaper, pod, e-cigarette, e-ciggy, e-pipe ou e-cigar. A variedade de nomes importa menos do que a ofensiva intensificada este ano por uma gigante global da indústria tabagista, a BAT Brasil, para regulamentar e, consequentemente, liberar o quanto antes no país a venda de cigarros eletrônicos, febre de consumo que assusta autoridades em saúde pública, pesquisadores da área médica e especialistas dedicados a estudar os efeitos decorrentes do uso do tabaco.
Para alcançar o objetivo, a BAT Brasil se vale de toda sorte de estratégia: mobilizar a opinião pública, lançar mão de dados científicos que parecem feitos sob medida, angariar apoio no Congresso Nacional para a empreitada e vender a ideia de que se trata de mal muito menor que as baforadas em um desses Lucky Strikes da vida, etapa fundamental nos planos de inundar o país com vapes de nicotina em curto prazo.
A empresa também tenta expor à imprensa sua posição sobre o tema. Foi com essa intenção que a empresa convidou 17 jornalistas de 15 veículos de diferentes estados, entre os quais o Grupo Metropole, para discutir no último dia 18 de março a regulamentação de vapes no país. Além do debate, o pacote incluiu uma visita às instalações do BAT Brazil Labs, tido como um dos mais modernos centros do mundo em pesquisa, inovação e desenvolvimento de produtos derivados do tabaco, situado em Cachoeirinha, cidade gaúcha da Grande Porto Alegre.
Para quem não pegou a visão ainda, BAT é a sigla da British American Tobacco, integrante da lista de maiores fabricantes de cigarros do planeta com presença em quase todos os países. É também o nome atual de uma velha conhecida dos brasileiros. No caso, a Souza Cruz. Líder do setor no Brasil, a empresa fundada em 1903 e controlada pela companhia britânica desde 1914 concentrou esforços no mercado tradicional do tabaco ao longo de um século. Mas o vento mudou de direção quando os vapes começaram a invadir a praça dominada por ela décadas a fio.
Batalha campal
Diante do avanço dos eletrônicos, a gigante resolveu levantar do berço até então esplêndido onde pretendia deitar eternamente. Entretanto, encontrou uma enorme pedra no caminho: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que possui a palavra final em assuntos relativos às indústrias farmacêutica, alimentícia e tabagista. Conhecida pelo controle rígido que impõe aos produtos sob sua alçada, a Anvisa vetou a venda de vapes no Brasil a partir de 2009. Em 19 de abril de 2024, cerca de quinze anos depois, a proibição foi mantida por decisão unânime da diretoria colegiada da agência.
Restou à BAT Brasil iniciar uma investida em larga escala para disseminar o mantra de que vapes são infinitamente menos prejudiciais à saúde que os cigarros comuns. A tática se baseia em um raciocínio simples. Em suma, o de que os dispositivos eletrônicos de nicotina produzem apenas 5% das mais de sete mil substâncias tóxicas resultantes da queima do tabaco, a exemplo do alcatrão e do monóxido de carbono. Portanto, devem ser vistos como alternativas capazes de reduzir danos e de abrir portas de saídas para o tabagismo.
Foto: Emundi/Bruno Todeschini
Obrigado por fumar
Grande parte da cruzada deflagrada pela antiga Souza Cruz para concretizar a regulamentação dos vapes no Brasil é baseada em pesquisas comparativas e estatísticas sobre o mercado mundial do tabaco. Trocando em miúdos, a boa e velha utilização da ciência como suporte para defesas e ataques do setor, tema bem explorado no cultuado filme Obrigado por Fumar, sátira de 2005 dirigida pelo cineasta Jason Reitman que conta as peripécias dos fabricantes de cigarros dos Estados Unidos para vender a ideia de que tabaco não é tão ruim como dizem.
À primeira vista, os argumentos sacados pela companhia para vender o próprio ponto de vista podem soar bastante convincentes. Coube ao gerente sênior de Assuntos Científicos e Regulatórios da BAT Brasil, Marcos Vinícius Machado Teixeira, apresentá-los aos jornalistas convidados para o debate. De acordo com Teixeira, as pesquisas apontam uma série de resultados positivos gerados pelos dispositivos eletrônicos em comparação com os cigarros comuns, nos mais de 80 países onde ele são regulamentados e vendidos formalmente, a exemplo do Reino Unido, Estados Unidos, Suécia, Nova Zelândia, Japão, Canadá e boa parte da União Europeia.
Acredite se quiser
Além de garantir que os vapes produzem um percentual 95% menor de compostos nocivos, Teixeira afirma que a quantidade de fumantes tradicionais vem caindo substancialmente nas nações onde os dispositivos são regulamentados, enquanto a curva de usuários dos eletrônicos cresce em sentido oposto. Entre os adultos ingleses, acrescenta o executivo, a proporção de pessoas que usavam cigarros comuns junto com vaporizadores caiu de 73,7% em 2012 para 31% em 2021. O que, segundo ele, mostra a tendência de abandono de produtos mais prejudiciais para os de menor risco.
Ao ver a explanação de Teixeira, é impossível não compará-lo a Nick Taylor, o intrépido porta-voz da indústria do tabaco protagonizado pelo ator Aaron Eckhart em "Obrigado por Fumar". Sobretudo, no trecho do debate em que o gerente da BAT Brasil assegura, com toda convicção possível, que a nicotina é "relativamente inofensiva", sem se dar conta do tamanho da incongruência em relativizar o alto potencial de dependência e de problemas de saúde causados pelo consumo sistemático da substância. Advertido pela reportagem do Jornal Metropole sobre o paradoxo, Teixeira, que é químico industrial por formação, deu uma de Nick: usou ouvidos de mercador e seguiu na valsa em defesa dos vapes.
Pesquisas sobre cigarros eletrônicos contrariam tese da BAT
Os argumentos da gigante do tabaco para acelerar a regulamentação dos cigarros eletrônicos no país colidem frontalmente com a série de pesquisas acerca do uso de vapes produzidas nos últimos anos. Entre os quais, vale destacar o estudo de autoria dos pesquisadores Josef Yayan, Karl-Josef Franke, Christian Biancosino e Kurt Rasche, todos vinculados ao Departamento de Medicina da Universidade Witten-Herdeck, na Alemanha.
Publicado em março de 2014 pela holandesa Elsevier, uma das principais editoras científicas do mundo, o material baseado em 11 pesquisas que compararam a saúde respiratória de fumantes e de usuários de cigarros eletrônicos desmonta a tese de baixa nocividade disseminada pela BAT Brasil. Ao todo, os autores do estudo identificaram mais de dez males originados pelo consumo de vaporizadores de nicotina.
Na lista, estão quatro tipos de pneumonia e dois de bronquite crônica, Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) e agravamento dos quadros de asma. Ao rol de enfermidades, os pesquisadores acrescentaram ainda a chamada Evali, doença nova e fatal que provoca lesões sérias nos pulmões e está diretamente associada ao uso de vapes. Nos Estados Unidos, a Evali provocou ao menos 70 mortes e paralisou por anos a regulamentação dos cigarros eletrônicos.
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Rota de colisão
O posicionamento dos cinco membros da diretoria colegiada da Anvisa na reunião em que a proibição dos vapes no Brasil foi mantida também desmontam os argumentos da companhia. Com base em dados que levaram em conta o impacto do veto, o cenário nos países onde os dispositivos eletrônicos são regulamentados e a posicionamento da comunidade científica, a cúpula da agência concluiu que onde os vapes foram liberados, como os EUA e o Reino Unido, houve um aumento no número de crianças e adolescentes que se tornaram fumantes.
Ao mesmo tempo, a Anvisa levou em conta pesquisas recentes que apontaram uma entrega de nicotina pelos vapes 20 vezes maior que a dos cigarros comuns. Ao contrário do que diz a BAT Brasil, para quem a dosagem a substância é muito menor. Por fim, a agência destacou ainda o aumento no consumo de tabaco em nações onde os vaporizadores foram liberados como justificativa para manter o veto e a falta de estudos de longo prazo sobre os efeitos.
Culpa do contrabando
Em contrapartida, a antiga Souza Cruz atribui os casos de mortes ligadas ao uso de vapes à ausência de regulamentação. O que, para a companhia, favorece o contrabando de dispositivos fabricados sem qualquer atenção com a saúde dos consumidores. Sobre o surgimento da Evali, a BAT Brasil atribuiu a doença ao uso de acetato de tocoferol (vitamina E) como base para os juices (líquidos com nicotina) encontrados nos cigarros eletrônicos clandestinos.
"O acetato de tocoferol se condensa muito rápido nos pulmões, e isso explica o surto de Evali. Uma vez regulamentado, os vapes serão produzidos com regras específicas, usando compostos que não causam danos à saúde, sem sabores ou formatos coloridos que atraem os mais jovens", destacou Marcos Vinícius Machado Teixeira, um dos porta-vozes escalados pela BAT Brasil para conversar com a imprensa na unidade da companhia em Cachoeirinha.
Por outro lado, o executivo da companhia admite que a regulamentação não é suficiente para impedir o contrabando de vapes, já que a BAT Brasil gasta recursos materiais e humanos há mais de uma década na tentativa de frear a entrada de cigarros produzidos no Paraguai através das fronteiras do país. Muito menos será capaz de evitar, por si só, o acesso de menores de 18 anos aos vaporizadores legalizados.
Dama dos vapes no Congresso Nacional
No afã de concretizar a regulamentação dos cigarros eletrônicos no Brasil, a indústria do tabaco se vale de uma arma usada ao longo do tempo pelas companhias do setor: o poderoso lobby junto aos políticos das mais variadas esferas do Poder Público, especialmente, do Congresso Nacional. Na proa desse movimento pró-vape, está a senadora sul-mato-grossense Soraya Thronicke (Podemos), eleita pelo extinto PSL em 2018 durante a coqueluche do bolsonarismo.
Antes, Soraya ganhou visibilidade nacional como candidata do União Brasil à Presidência da República em 2022. De lá pra cá, perdeu espaço para a conterrânea Simone Tebet (MDB), terceira colocada na corrida pelo Planalto e atual ministra do Planejamento do governo Lula. Um ano depois, ressurgiu na vitrine da imprensa nacional ao propor o polêmico projeto de lei para regulamentar os vapes no Brasil, resultado de investidas feitas por lobistas da indústria do tabaco.
Visita bancada
Mas, como diz o ditado popular, o diabo mora nos detalhes. Em dezembro de 2024, a Revista Piauí revelou que a senadora havia viajado à Itália para fazer um tour pela fábrica instalada na região da Bolonha por outra gigante mundial dos cigarros, a Phillip Morris, interessada na regulamentação de dispositivos eletrônicos. Em especial, os de tabaco aquecido, que ao contrário dos vapes, baseados em juices, utilizam o produto in natura, porém, sem gerar combustão.
Acontece que o périplo de Soraya pela Itália foi custeado pela Phillip Morris, com suporte do ex-senador paraibano Cássio Cunha Lima (PSDB), sócio de uma empresa que presta serviços à empresa. Dona da marca Malboro, a companhia nova-iorquina sediada no estado americano de Connecticut, segunda colocada no mercado brasileiro, aposta alto na regulamentação de dispositivos de tabaco aquecido, largamente usados no Japão e que apresentam desempenho semelhante ao dos vapes.
Para defender o projeto de sua autoria, a senadora repete os argumentos usados pelas duas líderes mundiais do setor. Em linhas gerais, afirma que os vapes e similares são menos prejudiciais que os cigarros comuns, que o contrabando abre espaço para o consumo de dispositivos fabricados sem fiscalização, que o Brasil perde receitas tributárias com a ilegalidade e que apenas países subdesenvolvidos resistem à regulamentação.
De rival a aliada
No mesmo diapasão, a BAT Brasil buscou aliados na trincheira oposta. Tanto que contratou como consultora científica a farmacêutica Alessandra Bastos Soares, que foi diretora da Anvisa de 2017 a 2020 e esteve à frente do setor de tabaco da agência. Presente ao encontro da empresa com os jornalistas convidados, Alessandra deixou claro que considera fumar e vaporizar direitos inalienáveis de cada pessoa, assim como consumir bebidas alcoólicas, refrigerantes e alimentos ultraprocessados, todos igualmente nocivos. Mas, para ela, cabe aos fabricantes e às autoridades em saúde pública a tarefa de oferecer produtos regulamentados e menos prejudiciais.
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