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Condenada à invasão: Cartão-postal de Salvador, Abaeté sofre com conflito religioso e obras públicas e particulares
Antes mesmo do Abaeté se tornar, em 1987, uma Área de Proteção Ambiental, a imprensa e a comunidade já denunciavam nomes envolvidos em obras nas dunas e roubos de areia para a construção civil
Foto: Metropress/Filipe Luiz
Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 3 de agosto de 2023
Poesia, beleza e mistério costumavam cercar a lagoa escura arrodeada de areia branca, cantada por Dorival Caymmi. Na voz do artista, o Abaeté encantava, mas também amedrontava quem se aproximava. Hoje não mais. O espaço, que outrora era objeto de versos e prosas, agora é cenário de disputa religiosa e uma insistente história de cobiça e ameaça. São invasões, lixo e descuidadas obras do próprio poder público que passam a arrodear a lagoa.
Nem tudo é novidade nessa história. Nem mesmo a atual inércia do governo do estado e da prefeitura. A verdade é que mais antiga que a canção de Caymmi, que data de 1959, só mesmo a relação dos moradores com Abaeté e o desrespeito à sua natureza. O próprio artista cantava as ganhadeiras e os pescadores que tiravam seu sustento daquela água negra. Turistas e moradores podiam até não fazer parte da letra, mas para eles o lugar era símbolo das belezas de Salvador e também espaço de lazer e de expressão da fé.Há tempos que as coisas mudaram. As ganhadeiras foram proibidas de lavar suas roupas na lagoa, os pescadores mudaram de águas e o que antes era um cartão postal da cidade hoje enquadra mais uma paisagem de descaso.
Foto: Metropress/Filipe Luiz
Só mudam os nomes
A areia fina e branca ao redor das 18 lagoas que compõem o parque vem perdendo espaço para construções irregulares. Mas engana-se quem pensa que esse é um problema recente, fruto do avanço imobiliário e do crescimento da construção civil. Antes mesmo do Abaeté se tornar, em 1987, uma Área de Proteção Ambiental (APA), a imprensa e a comunidade já denunciavam nomes como o conhecido sargento Sampaio, apontado na época como dono de uma espécie de imobiliária, que loteava terras e construía sobre as dunas.
O militar era ousado. Em uma ameaça disfarçada de carinho à sua arma, chegou a tentar intimidar o então prefeito Mário Kertész, ferrenho combatente das invasões e ocupações na região. Recortes antigos de jornais do início dos anos 1980 lembram também de um episódio em que o sargento alegava ter autorização da Justiça baiana para as construções. O Judiciário, claro, desmentiu Sampaio e determinou a derrubada das obras.
Hoje, os sargentos Sampaios se multiplicaram. Podem até ser discretos nas ameaças e negociações, mas não nos empreendimentos. Aos poucos, eles vão transformando as dunas em canteiros de obras. Em 2021, o Jornal Metropole teve acesso, com exclusividade, a uma série de fotografias aéreas mostrando grandes imóveis sendo levantados em meio à areia e à restinga. Ao final da Avenida das Dunas e da Rua Afrânio Coutinho, uma nova via improvisada foi construída e terrenos foram cercados com muros em uma Zona de Preservação Permanente do Abaeté. Na época, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur) informou que realizava fiscalização constantemente e que já havia embargado algumas obras.
Moradores desconfiam que os novos Sampaios sejam, dessa vez, policiais militares e, por isso, vivem com o medo de represálias. “Não são habitações simples. Os responsáveis pelas obras chegam em carros de luxo. E temos certeza que tem policial militar envolvido. Eu mesmo já flagrei por três vezes uma viatura chegando para visitar a obra. Sempre no horário das 18h”, contou, em anonimato, o proprietário de uma casa próxima.
Equívocos públicos
“Salvador, dunas de Abaeté, 22 de agosto de 1984. O caminhão encosta, os homens descem rápidos e ágeis e retiram areia, no trecho Itapuã/2ª Rótula. Impunemente, partem e deixam as dunas com menos areia e ecologia magoada”. A retirada de areia para a construção civil e o crescente desrespeito à natureza já estampavam os jornais locais nos anos 1980, quando o Parque Metropolitano do Abaeté foi criado em um decreto municipal pelo então prefeito Mário Kertész. O objetivo era justamente tentar frear o processo de degradação ambiental que crescia junto com o avanço do bairro de Itapuã e ameaçava a lagoa.
Gestões posteriores acabaram frustrando o movimento e abrindo espaço para ações ainda piores. No início de 1983, por exemplo, a prefeitura, comandada por Renan Baleeiro, chegou a autorizar duas empresas (Infraero e Everaldo Bacelar) a extrair e comercializar areia retirada de regiões das dunas. Só de uma das jazidas, 80 caçambas de areia eram retiradas por dia, rendendo diariamente 96 mil cruzeiros. Em troca, a prefeitura lucrava com imposto arrecadado.
Há exatos 30 anos, uma nova versão do Parque Metropolitano do Abaeté estava prestes a ser reinaugurada pelo governador da época, Antonio Carlos Magalhães. O contestado projeto incluía o calçamento do entorno do parque, que foi entregue com quiosques, lojas, parque infantil, a chamada Casa das Lavadeiras e Museu Casa da Música, onde está exposta a conhecida Fubica, considerada o primeiro trio elétrico. Não por coincidência, a inauguração acabou iniciando um processo de afastamento de banhistas e turistas. O parque logo caiu no desuso e virou símbolo de insegurança. Hoje, basta uma rápida visita ao local para perceber: poucos comerciantes e quase nenhum visitante. As presenças mais marcantes são de animais soltos e estruturas descuidadas.
Foram anos sem projetos de requalificação até que, em 2019, a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder) resolveu construir uma estação elevatória de esgoto no parque. A justificativa era fazer com que os rejeitos do espaço não caíssem mais nas fossas sépticas. Povo de santo, comunidade cigana, ambientalistas e moradores protestaram firmemente contra a intervenção, alegando que esse tipo de estação representaria graves riscos à lagoa. O projeto, no entanto, foi aprovado pelo Inema, recebeu parecer favorável do Ministério Público e a comunidade teve que enfiar goela abaixo.
Foto: Metropress/Filipe Luiz
Fora do parque, mas ainda na área de preservação do Abaeté, um projeto mais recente também tem mobilizado ativistas e moradores. Em 2022, a prefeitura de Salvador anunciou o investimento de R$ 5 milhões em um projeto de urbanização em uma área de proteção ambiental. A previsão era a construção de uma sede, banheiros, auditório, mirantes, recantos e obras de micro e macrodrenagem na região hoje usada por uma instituição evangélica. Aliado ao projeto, existia ainda a proposta de mudar o nome do local, tradicionalmente utilizado pelo povo de santo, para Monte Santo Deus Proverá. Mais uma vez, entidades de defesa da região se mobilizaram.
Em entrevista à Rádio Metropole no final do ano passado, o prefeito Bruno Reis (União) minimizou as intervenções. De acordo com ele, foram feitos apenas sanitários e uma sala para os ambientalistas. Questionado pela apresentadora do Mojubá, Cristiele França, o gestor afirmou que não existiam grandes obras e que era preciso deixar de lado as disputas religiosas. Meses depois, em abril, a Justiça Federal determinou que a prefeitura suspendesse imediatamente o projeto de urbanização. Ao Jornal Metropole, a gestão informou que não há nenhuma obra na região e que tem feito uma série de atividades para o respeito e liberdade de culto na capital baiana.
Cristiele França questiona prefeito Bruno Reis sobre obras no Abaeté
Uma guerra santa
A proposta de mudança do nome das dunas do Abaeté não vingou. Apesar da força da comunidade evangélica, o próprio prefeito rechaçou a possibilidade de sancionar o projeto de lei que era de autoria do vereador e também pastor Isnard Araújo (PL). Mas o caminho de subida das dunas já dá indícios do conflito que vive a região.
Na canção de Caymmi a presença do povo de santo já era cantada com “a zoada do batucajé”. O Abaeté sempre foi espaço de culto para religiões de matriz africana. Há cerca de dez anos, no entanto, um novo movimento acontecia naquelas areias: os evangélicos da capital transformaram as dunas do Abaeté em uma espécie de Monte Sinai para eles. Lideranças da comunidade acusam partidos políticos de prometer o espaço para o segmento religioso. Tudo isso, claro, com interesses eleitoreiros.
A convivência não tem sido nada harmoniosa. Oferendas destruídas e placas ameaçadoras não são raras no caminho até o topo das dunas. Ainda no ano passado, a ialorixá Jaciara Ribeiro, do Axé Abassá de Ogum, chegou a denunciar, no programa Mojubá, na Rádio Metropole, um episódio de violência que teria sofrido no local. Ao desembarcar de um veículo para filmar as obras que estavam sendo feitas, ela teria sido hostilizada e violentada.
“Eles descem em grupos de 10, 15 pessoas, jogam bíblia. Existe algo bem maior do que só essas obras, existe o ódio, e isso tem me deixado preocupada”, contou.
Uma mar de desrespeito
A capa de um jornal local em 6 de junho de 1985 era estampada pelo entusiasmo de barraqueiros e lavadeiras aguardando a aprovação do tombamento do Parque das Lagoas e das Dunas do Abaeté. Eles só pediam que o processo não os prejudicasse, retirando-os da área. A notícia é antiga, mas a expectativa persiste até hoje. Trinta e cinco anos depois, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ainda não concluiu o processo. A morosidade típica dos órgãos públicos, neste caso, não é a única justificativa. Em resposta a uma solicitação do defensor Gabriel Cesar dos Santos, o instituto informou que o processo estava desaparecido e, por isso, não conta com documentos que subsidiem a análise. Ao Jornal Metropole, o órgão informou que o pedido foi reaberto em 2020 e está em fase de mapeamento e reuniões com os envolvidos com o espaço.
Foto: Divulgação/Forum Permanente de Itapuã
Apesar de todas as ameaças acumuladas ao longo desses anos, ativistas da causa do Abaeté acreditam que alguma coisa seria diferente se, ao menos, um tombamento provisório tivesse sido garantido pelo Iphan lá atrás. Afinal, mesmo que funcionasse apenas no papel, seria uma proteção a mais para uma área que precisa reafirmar constantemente a necessidade de sua preservação não só para moradores, mas também para o poder público.
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