Faça parte do canal da Metropole no WhatsApp >>

Terça-feira, 30 de abril de 2024

Home

/

Notícias

/

Cultura

/

Lenda de Salvador, há 27 anos morria a Mulher de Roxo

Cultura

Lenda de Salvador, há 27 anos morria a Mulher de Roxo

Entre os anos 1960 e 90, de identidade desconhecida, ela magnetizou toda a cidade com seu mistério e delicadeza

Lenda de Salvador, há 27 anos morria a Mulher de Roxo

Foto: Arquivo Histórico de Salvador / Fundação Gregório de Mattos

Por: James Martins no dia 05 de abril de 2024 às 12:25

Uma mulher usando um vestido intensamente roxo (às vezes preto, às vezes de noiva) e um enorme crucifixo no pescoço, circula pela Rua Chile e arredores. Com postura aristocrática, ela tem os pés descalços e, às vezes, mui educadamente, pede dinheiro para comer ou comprar maquiagem: mas só aceita cédulas, moedas jamais. Foi basicamente com esses ingredientes que a Mulher de Roxo entrou para a história de Salvador. De sua vida anterior e das motivações para o seu aparente luto perpétuo, ninguém sabe ao certo. Nem sequer nome ela tinha. Ou, por outra, tinha vários: sendo Florinda o mais recorrente. Florinda dos Santos? Florinda Grandzwester? Ninguém sabe ao certo. O que se sabe é que, há exatos 27 anos, no dia 5 de abril de 1997, a lendária Mulher de Roxo morreu.

Sabe-se lá vinda de onde, entre os anos 1960 e início dos anos 90, aquela intrigante figura fez da Rua Chile o seu reinado. Foi testemunha e agente das mudanças que o Centro Histórico passou. Há quem diga que era de Paripe, outros juram que tinha raízes na cidade de São Sebastião do Passé. Alimentado pelas versões contraditórias que ela mesma espalhava, quando estava a fim de papo, o mistério se impôs e magnetizou toda a cidade. “Tenho 15 anos. Sou da família Rainha Princesa”, respondia às vezes aos enxeridos mais insistentes. 

“Eu lembro dela como uma espécie de deusa ou bicho papão. Era criança e sentia medo e fascínio. Tinham mães que a usavam para assustar os filhos, para fazer o dever, comer verduras… Mas, na verdade, ela só ficava na dela, não incomodava ninguém. Até para pedir era discreta. Pensando agora, percebo que a Mulher de Roxo foi uma das poucas pessoas nobres que de fato habitaram Salvador”, diz o professor Jonas dos Santos.


Em um raro momento: de preto, calçada e empunhando bandeira.

Dizem (esta palavra ainda vai aparecer muito) que a razão de sua loucura foi ter sido abandonada pelo noivo em pleno altar. Daí o vestido de noiva com que que às vezes desfilava rodrigueanamente entre a Praça da Sé e a Baixa dos Sapateiros. Outros acreditam que ela estava sendo preparada para seguir a vocação religiosa, uma freira fugida, noviça rebelde. As pistas para o matrimônio frustrado estavam também em que a Mulher de Roxo, constantemente, evocava um certo noivo que mandou estampar seu retrato nas cédulas de dinheiro (daí ela só aceitar esse tipo de esmola) para que todos vissem sua majestade e beleza. Ou dizia que se casou ali no Fórum Ruy Barbosa.

“Os mais novos não têm noção, mas ela marcou mesmo a vida na cidade. Viralizou, como se diz atualmente. Ah, se fosse hoje, a Mulher de Roxo seria influencer, com certeza…”, afirma a socióloga Jaiana Meneses, que ouviu as histórias da dama através de seu pai.

Rua Chile, o Reinado — Cantada na primeira (e nunca gravada) composição de Caetano Veloso, “Clever Boys Samba”, a Rua Chile era não só a primeira, mas realmente a principal via de Salvador, que concentrava as lojas chiques, os consultórios dos renomados médicos e por onde desfilavam as beldades da sociedade local. Foi nela que a Mulher de Roxo instalou seu reinado. “Eu sou a dona de tudo isso aqui”, gabava-se. O trono, se é que havia, ficava na Sloper. Não por acaso alguns a referiam como a “louca da Sloper”. 

A Casa Sloper foi uma das pioneiras lojas de departamento de Salvador. Ali se encontrava de tudo, de louças a calçados. Pois a Mulher de Roxo, que costurava as próprias roupas, concentrava suas compras em produtos de beleza, especialmente batom. Ao redor, outros estabelecimentos de sucesso como a loja Etan (onde damas da sociedade e do meretrício adquiriam roupas íntimas para as mais diversas situações), a confeitaria Chile com seu famoso Dusty Miller, etc etc etc.

O Albergue — O trono era a Sloper, o reino a Rua Chile, mas a Mulher de Roxo dormia mesmo no albergue municipal da Baixa dos Sapateiros, ao lado do Mercado de São Miguel, onde hoje funciona o Centro de Saúde Pelourinho. Dizem que passou a se hospedar ali em 1977. Com seus modos refinados e dada à discrição, ela esperava os outros terminarem suas refeições para comer sozinha e sossegada. Não gostava de barulho nem de confusão.


No albergue noturno / Foto: Tribuna da Bahia.


Aqui a Mulher de Roxo passava suas noites, antes de ser internada no Hospital Irmã Dulce.

O Fim — Internada com erisipela, em 1992, no Hospital Irmã Dulce, a Mulher de Roxo morreu no dia 5 de abril de 1997. Foi enterrada como indigente, já que não tinha documentos. A lápide bem que poderia ter recebido a alcunha que a consagrou e que deu título a música, peça e livro. 

O reconhecimento maior está no mural de Carlos Bastos, que a colocou no leme da Galeota Gratidão do Povo, em sua obra monumental intitulada “Procissão de Bom Jesus dos Navegantes”, feita entre 1973 e 1975 no plenário da Assembleia Legislativa da Bahia. No mural de 160 metros, o artista pôs a doce senhora entre figuras como Jorge Amado, Gal Costa, Dorival Caymmi e outros de sua gente.

PS: Há muitas outras referências à Mulher de Roxo. Uma música da banda Cascadura (gravada com Pitty); um mini-documentário dirigido por Fernando Guerreiro e José Américo Moreira; a mulher que aparece de véu roxo no filme “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, que muitos acharam ser uma representação de Maria Madalena, mas o próprio Glauber dizia ser menção à dona da Rua Chile; o livro da jornalista Patrícia Sá Moura, intitulado “Mulher de Roxo”.