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Portugal, escravidão e reparação no Brasil

Portugal, escravidão e reparação no Brasil

O argumento dos políticos e historiadores portugueses vistos na imprensa de lá é uma espécie de lição de moral aos brasileiros

Portugal, escravidão e reparação no Brasil

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 03 de maio de 2024 às 00:00

Na semana de comemoração dos 50 anos da Revolução dos Cravos, o advento que pôs fim à ditadura de 48 anos em Portugal (1926-1974), o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, furou a bolha das celebrações e, em um jantar com jornalistas estrangeiros, deu seu veredicto sobre o que ele próprio chamou de crimes de seu país contra as ex-colônias. Disse que Portugal devia ‘pagar os custos da escravatura’ e dos crimes coloniais. Segundo o presidente, seu país deve assumir total responsabilidade pelos erros do passado, pelos massacres coloniais, e pagar os custos disso.

Pelo fato de as declarações de Marcelo terem sido dadas na véspera das cerimônias pelos 50 anos da Revolução dos Cravos, por terem sido dadas exclusivamente a jornalistas da imprensa estrangeira que atuam no país e por falar em pagamento e custos, o assunto alugou um triplex na cabeça do primeiro-ministro, Luís Montenegro, dos parlamentares, principalmente os da extrema-direita em ascensão no país, e de autoridades brasileiras, inclusive. A princípio, as declarações de Marcelo já foram entendidas em Portugal e fora de lá como um aceno à possibilidade de o país indenizar financeiramente e de algum modo suas ex-colônias.

A essa hipótese o primeiro-ministro já reagiu afirmando assertivamente que não havia a menor possibilidade de haver qualquer tipo de reparação econômica, a quem quer que fosse, pelo que quer que fosse. Não se fala em outra coisa na imprensa portuguesa. Em relação às ex-colônias envolvidas nas guerras coloniais portuguesas, como é o caso de Angola e Moçambique, por exemplo, pelo que se lê nos jornais portugueses e uma passada de olhos nos veículos dos dois países africanos facilmente encontráveis em grupos de mensageria na web, a possibilidade de indenização ou coisa parecida não está em causa, como diriam os portugueses.

O cenário descrito por Marcelo Rebelo como passível de reconhecimento como crime e de pagamento é lido pelo governo e pelo parlamento portugueses como processos já em andamento e circunscritos às esferas diplomáticas e culturais com acordos bilaterais em áreas como educação, ciência e tecnologia. Exemplos disso, entre os países africanos ex-colônias e o estado português: recuperação de patrimônios culturais e museus com recursos portugueses nas nações, levantamento de obras de arte para devolução aos países, assinatura de acordos e convênios com universidades portuguesas para acesso de universitários e professores das ex-colônias.

Campeão de tráfico humano

Quando se fala em indenização financeira e pagamento em moeda aos países ou aos descendentes dos povos africanos escravizados, o debate adquire tons de conflito entre quem se dispõe a falar disso, sobretudo se o debate referir-se à escravização de africanos no Brasil. Diante de uma declaração da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, a de que o Brasil vai fazer esforços para buscar no governo português propostas concretas de reparação, o argumento dos políticos e historiadores portugueses vistos na imprensa de lá é uma espécie de lição de moral aos brasileiros.

Questiona-se, lá, como o Brasil pode estar buscando indenização financeira pela escravidão, que eles nomeiam como escravatura, se o Brasil tornou- -se uma nação independente em 1822 e, sem qualquer autoridade de Portugal que o obrigasse a manter aqui o sistema escravagista no Brasil, o manteve até 1888. Ressaltam que o Brasil fez o oposto: multiplicou o tráfico humano em muitas vezes mais após a independência e foi o país campeão de importação de mão de obra escravizada do mundo àquela altura, mantendo-a quando já era ilegal no mundo e sendo um dos últimos países a acabar com a escravidão e sem reparação. Os partidários da extrema-direita portuguesa estão usando a fala do presidente para rechaçar ainda mais a presença dos brasileiros em Portugal, onde eles são hoje 35% dos estrangeiros vivendo no país.