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Com viagens, presentes e patrocínios, farmacêuticas alimentam relação com médicos em troca de prescrições

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Com viagens, presentes e patrocínios, farmacêuticas alimentam relação com médicos em troca de prescrições

Dona de um faturamento bilionário, indústria farmacêutica colocam em prática sofisticada engrenagem, com representantes, banco de dados, presentes e patrocínios, para induzir ou negociar a prescrição de medicamentos

Com viagens, presentes e patrocínios, farmacêuticas alimentam relação com médicos em troca de prescrições

Foto: Metropress/Tácio Moreira

Por: Laisa Gama no dia 15 de agosto de 2024 às 09:46

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 15 de agosto de 2024

Que a multimilionária indústria farmacêutica detém bancos de dados estratégicos com detalhes sobre hábitos, problemas de saúde e perfil de consumo de seus clientes não é novidade para ninguém - ou pelo menos para a parte mais atenta dos consumidores. Agora, vem à tona outro banco de dados, desta vez com informações sobre as prescrições dos médicos. Essas informações se unem a outras estratégias já conhecidas, como o custeio de viagens para eventos e congressos, mimos e regalias, para induzir, convencer ou “negociar” a indicação de medicamentos específicos da farmacêutica. Nessa jogada de interesses, a saúde dos pacientes nem sempre vem em primeiro plano.

Esse lobby de consultório tem um objetivo: melhorar ainda mais o desempenho do setor farmacêutico, que só em 2022 faturou mais de R$ 130 bilhões no Brasil, segundo a Anvisa. Como nesse setor há uma série de limitações legais para propaganda diretamente ao consumidor, as empresas apostam nos médicos, classe que funciona como intermediário, que tem credibilidade e o poder de receitar.

Engrenagem do lucro
Fazem parte da engrenagem desse lobby uma série de estratégias, que vão desde a visita e o assédio dos chamados representantes farmacêuticos. Aquele pessoal todo engravatado, que vai aos consultórios para fortalecer a relação das marcas com os médicos e, claro, angariar prescrições. Ao trabalho deles, une-se o tal banco de dados citado lá no começo. É na farmácia que a mágica acontece, lá o paciente não deixa apenas parte do salário e seus dados quando cede o CPF. Ao entregar a receita, o consumidor está também oferecendo informações sobre o médico. O atendente, já treinado e induzido pelo sistema digital, deixa ali nome, CRM e prescrição do profissional. Parece parte da burocracia do atendimento, coisa inocente, mas, na verdade, é uma estratégia que serve, inclusive, para que do outro lado os representantes pressionem e questionem, por exemplo, “o que aconteceu que o doutor está dando preferência ao colírio da marca concorrente”.

Mimos e viagens ao seu médico favorito
A parte mais escandalosa dessa engrenagem é a série de mimos, que vai de presentes, jantares, viagens e patrocínios para participação em eventos da categoria. Em 2022, uma festa badaladíssima em Natal ganhou repercussão após o Intercept revelar que ela reuniu centenas de pediatras que participavam de um congresso. Abadá, open bar, bandas e comida à vontade. Tudo bancado pela farmacêutica Mantecorp Farmasa, que divulgava seu antialérgico. No mesmo dia, os pediatras compartilharam fotos com o mascote da marca. Esse é só um dos casos que escancarou o conflito de interesses: uma empresa que quer vender seu produto bancando a farra de quem têm o poder de prescrevê-lo.

Viagens e patrocínios são o eixo central da relação médicos-farmacêuticas. Em 2012, um acordo entre o Conselho Federal de Medicina e a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa até tentou regularizar a prática, mas as regras ainda ficaram frouxas. Os laboratórios continuaram podendo custear transporte, refeições, hospedagem e inscrição nesses eventos. Essa frouxidão sai caro e quem paga a conta? O consumidor e a própria saúde, que vira moeda de troca. Um levantamento feito pela jornalista Amanda Rossi, do portal Uol, revelou que, em seis anos, as farmacêuticas desembolsaram cerca de R$ 200 milhões com médicos de Minas Gerais, isso inclui viagens e presentes como cadeiras, TV e ar- -condicionado para consultórios. Por que Minas Gerais? Porque é o único estado onde há legislação exigindo que os benefícios para quem atua na saúde sejam declarados. No restante do país, não tem como saber.

Foto: Reprodução/Freepik

Onde esconderam a ética?
Embora as regras sejam frouxas, o próprio Código de Ética Médica pontua que os profissionais não devem realizar sua atividade em acordo com a indústria farmacêutica. É justamente ao código de ética que recorre o presidente do Cremeb (Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia), Otávio Marambaia, ao criticar a prática. Ele acredita que a deficiência no ensino da Medicina pode abrir as portas para esse tipo de conduta. “Começa com profissional que tem um déficit de conhecimento e, portanto, de escolha e de segurança na prescrição. Segundo, a maioria dessas escolas não tem corpo docente suficiente para tratar da matéria Clínica Médica e Ética Médica. Se é um profissional ético, você pode ter certeza que não vai fazer conluio com laboratórios ou farmácia de manipulação”, diz.

Apesar da engrenagem de lobby cada vez mais sofisticada, há médicos que denunciam a prática e buscam saber em qual buraco a ética foi enfiada. Em entrevista à Metropole, o pneumologista Francisco Hora já relacionou o uso abusivo de psicotrópicos às estratégias comerciais desse mercado. Para ele, a prática médica deve ser imune às influências externas, inclusive da indústria farmacêutica. “Os médicos não devem permitir que benefícios, sejam eles a título do que for, venham influenciar suas decisões médicas. A primazia tem que ser do paciente, a saúde e o bem-estar do paciente”, afirmou.