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Esquecida na Calçada: Símbolo cultural de Salvador, Feira de São Joaquim espera há 12 anos conclusão de requalificação
Comerciantes do espaço têm medo de perder espaço e essencial com obras, como aconteceu com a Ceasinha e o Mercado do Peixe
Foto: Filipe Luiz/Metropress
Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 10 de agosto de 2023
É um vai e vem de pessoas entre vielas apertadas, que, sabe-se lá como, dão espaço também para caixotes e carrinhos de mão. A confusão também é ouvida. Gritos dos mais criativos comerciantes tentando atrair o freguês se misturam com a pechincha dos clientes e até cacarejos de galinha. O olfato também dá sinais de onde estamos. Vez ou outra é o cheiro de marisco que vem forte, mas logo perde o destaque para o odor das folhas usadas em chás ou rituais religiosos. A bagunça é sentida já do lado de fora, na Avenida Engenheiro Oscar Pontes, bairro da Calçada, Cidade Baixa.
É a Feira de São Joaquim, uma espécie de entidade na cidade de Salvador. Afinal, além de colocar alimento na mesa com renda e abastecimento, ela representa cultura e identidade de um povo. Toda sua grandiosidade não foi, no entanto, suficiente para livrar o lugar do descaso do poder público e nem acelerar a espera de 12 anos pela conclusão de obras de requalificação.
Foto: Filipe Luiz/Metropress
Uma memória de incômodo
A maior feira livre da Bahia nem sempre foi de São Joaquim, padroeiro da categoria. Antes de ser dele, ela foi dos meninos - ou melhor, de Água de Meninos, como ficou conhecida aquela região onde os órfãos da Casa Pia costumam se banhar e brincar nas águas da baía. Mas isso ainda é coisa recente, data de 1959. Estima-se que o comércio que originou a feira tenha, na verdade, mais de 300 anos. Surgiu de uma pequena venda que se aproveitava da proximidade do mar e de um atracadouro.
Antes de ser de Água de Meninos, a Feira de São Joaquim era Feira do Sete e ficava um pouco mais à frente de onde está hoje, nas imediações do sétimo armazém das Docas. Por lá, era intenso o movimento de saveiros chegando das ilhas da Baía de Todos-os-Santos e Recôncavo Baiano abarrotados de produtos. Mas, com o prolongamento do cais das Docas, ela precisou se mudar para a Enseada de Água de Meninos. Praticamente dobrou de tamanho até que passou a ser alvo de episódios de incêndios, para agonia dos comerciantes e felicidade dos urbanistas da época.
O fogo decisivo foi em 1964. Destruiu totalmente a feira. Na época, o incêndio foi atribuído a um vazamento de gás da Esso, empresa de combustível que tinha tanques no local. Algumas versões, contudo, defendem que ele tenha sido criminoso. Afinal, aquela ocupação era vista como um obstáculo para as obras de urbanização e para uma imagem positiva nos estrangeiros que desembarcavam no porto de Salvador. Recortes antigos de jornais do período mostram o incômodo que a feira causa na elite. Uma das notícias, de agosto de 1931, dá conta de uma exigência feita pelas empresas que construíram um cruzamento férreo e a Avenida Jequitaia. Elas queriam que a prefeitura determinasse a retirada imediata das barracas. Foi o engenheiro Oscar Pontes - responsável pelas obras na região e que hoje dá nome à avenida da feira - quem teria negociado a condição com o prefeito Pimenta da Cunha.
Barulho de movimento e resistência
“A cidade precisa de nós para comer e nós precisamos dela para viver”. A declaração é coerente e atual, mas de um personagem fictício e antigo, um feirante que luta contra a remoção da Feira de Água de Meninos no filme A Grande Feira. O longa-metragem, realizado em 1961 por Roberto Pires, mostra o dia a dia dos comerciantes e os interesses políticos por trás dessa desocupação.
Filme e realidade têm fins diferentes, mas em ambos a feira resiste. Após o incêndio que aconteceu em 1964, logo ao lado do seu lugar original, ela se reergueu, desta vez batizada de São Joaquim. Cresceu. Sempre no sentido do Bonfim, até o tamanho em que hoje se encontra, limitada pelo terminal do Ferry-boat, pela Avenida Oscar Pontes, pelo antigo prédio da Petrobras e pelo mar. Os 34 mil metros quadrados ainda parecem apertados para os 8 mil trabalhadores e 6 mil visitantes que aparecem diariamente.
É gente chegando de toda parte da capital. Cidade Alta e Cidade Baixa. Pelo mar, pelas grandes avenidas que cortam o bairro e até pelo Plano Inclinado da Liberdade/ Calçada, modal que liga um dos bairros mais populosos da capita à região de São Joaquim. Para ajudar na chegada à feira, uma passarela de pedestres também chegou a ser projetada pelo arquiteto João Filgueiras, o Lelé. A proposta acabou não vingando, mas São Joaquim continuou como a mais movimentada da cidade.
Foto: Filipe Luiz/Metropress
Renda, encontros e diversidade
No vai e vem pelas estreitas travessas, os encontros são comuns e talvez, para muitos, façam até parte da missão de ir à feira. São amigos, conhecidos de décadas e até famílias, que acumulam gerações tirando suas rendas daquela bagunça organizada. Box que passou de pai para filho, feirante que começou com um carrinho de mão e hoje emprega colegas em uma loja. Por eles, a feira é considerada uma mãe, sustenta quem vive dela.
E engana-se quem pensa que deixou de ser assim. O historiador Rafael Dantas, por exemplo, discorda daqueles que defendem a queda da representatividade de São Joaquim na cidade. De acordo com ele, as feiras já chegaram a ser responsáveis por 80% do abastecimento da capital. Isso até a metade do século 20, depois, com a chegada dos supermercados, como o antigo Paes Mendonça, sua participação, claro, foi caindo até chegar em 50% entre as décadas de 70 e 80. Apesar disso, São Joaquim continua, segundo o historiador, como referência econômica e cultural para a cidade.
“Mesmo assim, ela continua atuante, sendo segunda e até a primeira opção para muita gente - afinal nela você consegue preços mais acessíveis e consegue pechinchar - e continua movimentando emprego, oportunidade de conversar e ver pessoas, coisa que você não faz no mercado, que é uma coisa muito individualista. A feira é um trabalho em comunidade”, afirma o historiador ao Jornal Metropole.
O gosto amargo do esquecimento
Apesar da bagunça organizada ser uma características da feira, consumidores e parte dos feirantes cobram requalificação para garantir segurança e infraestrutura. A espera já passa dos 12 anos. Em 2011, um projeto de revitalização coordenado pela Secretaria de Turismo da Bahia (Setur) foi apresentado e dividido em três partes. A primeira foi concluída em 2016, com dois anos de atraso. Foram feitos serviços de pavimentação, drenagem, instalações elétricas e hidráulicas e reconstrução dos boxes, mas em apenas 30% da feira. O restante continua sofrendo com descaso do poder público.
Desde então, as outras etapas seguem sem previsão. Ao Jornal Metropole, a Setur e a Conder (Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia), responsável pela execução da obra, alegam que, com o aumento nos preços de itens da construção civil após a Covid-19, as empresas responsáveis pelas obras pediram distrato. A Setur não deu um prazo, mas informou que uma nova licitação deve ser feita.
O problema com as empresas vem de antes. Ainda no início do projeto, muitas delas acabaram dando para trás quando viram o tamanho da responsabilidade. O desafio era agradar 8 mil comerciantes, que, mesmo sabendo da necessidade, tinham medo de acontecer com a feira o mesmo que, tempos depois, ocorreu com a requalificação da Ceasinha e do antigo Mercado do Peixe.
A Ceasinha, por exemplo, virou quase um mini shopping e o reflexo foi parar no preço. Já o Mercado do Peixe mudou de nome, agora é Praça Caramuru, e os 36 boxes tiveram que dar espaço a 11 restaurantes. O receio dos comerciantes de São Joaquim era exatamente esse: perder essência e espaço.
Domingos Leonelli, à frente da Setur na época do lançamento do projeto, resistiu a esse tipo de intervenção. Realizou assembleias com comerciantes e, junto com eles, não aceitou transformar a feira em uma espécie de shopping. A ideia dele era justamente manter a autenticidade do lugar. Transformá-lo em um dos centros turísticos da cidade, mas sem perder suas características e clientela tradicional.
“A feira em si já é muito rica. É um concentrado de tudo que é a Bahia e Salvador. Não precisa de nada artificial. Até porque os turistas dispensam a artificialidade, eles buscam o autêntico. A intenção era um espaço como ele é, mas sanitizado, com rede elétrica segura e fácil de limpar”, conta.
Foto: Filipe Luiz/Metropress
O cheiro do futuro
Entre os feirantes, não existe unanimidade sobre as obras. Presidente do Sindfeira (Sindicato dos Feirantes e Ambulantes de Salvador), Nilton Ávila - o Gago da Feira - reconhece isso. Mas ele também não tem dúvidas de que, como está, os dias da feira estão contados. Segundo Gago, os 30% já requalificados têm mostrado resultado. Se antes os turistas iam só visitar, hoje já param para consumir. E é isso que os comerciantes precisam.
“Não queremos elitizar, nosso público é da Cidade Baixa e o povo do Axé. Mas atrair turistas também é uma necessidade, porque éramos o centro de abastecimento da cidade, mas já existem outros pela cidade”, avalia.
Mas a requalificação não é a única solução. Os feirantes cobram capacitação e valorização do espaço como local cultural. E apesar do pessimismo com relação ao futuro, eles sabem que feira é local de resistência. Seja de uma identidade, de tradições e até resistência à indiferença do poder público.
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