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Há 18 anos, Padre Pinto “incendiava” Festa de Reis vestido de Oxum

Cultura

Há 18 anos, Padre Pinto “incendiava” Festa de Reis vestido de Oxum

O sacerdote, que revitalizou a festa com forte atuação artística e comunitária, morreu em silêncio em 2019

Há 18 anos, Padre Pinto “incendiava” Festa de Reis vestido de Oxum

Foto: Divulgação

Por: James Martins no dia 05 de janeiro de 2024 às 10:40

Atualizado: no dia 05 de janeiro de 2024 às 16:25

Há exatos 18 anos, a Festa de Reis da Lapinha virou notícia nacional. Com destaque no Jornal da Globo de 5 de janeiro de 2006, uma matéria exibia a performance do padre José de Souza Pinto à frente da celebração que ele ajudava a rejuvenescer desde o início da década de 1990, quando, entre outras atitudes providenciais, criou o Terno da Anunciação. Vestido de Oxum em plena praça, Padre Pinto chocou parte da comunidade católica e acabou, como consequência, afastado da paróquia e de suas atividades sacerdotais.

Naquele ano, a festa também caiu numa sexta-feira. Já no dia seguinte, a Arquidiocese de Salvador, através do cardeal arcebispo primaz do Brasil, Dom Geraldo Majella, divulgou uma nota pública sobre a manifestação. Um trecho dizia o seguinte:
 
"As apresentações do Padre José de Souza Pinto, religioso da Sociedade das Divinas Vocações, se colocaram fora da normalidade e, por isso, causaram perplexidade entre as autoridades presentes, os fiéis e os demais participantes dos festejos. Ademais, os comportamentos manifestados naquela ocasião estão a merecer cuidados terapêuticos, cujas providências estão sendo tomadas por parte dos superiores da sua Congregação e da Arquidiocese".

Até hoje, porém, há quem jure de pés juntos que, se não tivessem repercutido além das fronteiras locais (onde, de fato, já eram bem conhecidas), as peripécias do Padre Pinto não causariam tanta celeuma nem resultariam na severa atitude da Igreja. Na citada matéria da Globo, ele mesmo garante que fez tudo sob consentimento  — inclusive do cardiologista. A reportagem, porém, também registra que conflitos locais já havia, e termina com o apelo plangente do sacerdote: “Eu não quero sair daqui. Eu quero morrer aqui”.

O que, infelizmente, não foi mostrado (isso a Globo não mostra), mas não podemos perder ocasião de abordar, é a importância realmente nacional que as folias de reis baianas têm para a cultura nacional (o pesquisador Nelson Cadena considera a de Reis a “mãe de todas as festas”). E também o papel fundamental, muito além do lado performático, do Padre Pinto para sua revivescência. Sobre o primeiro aspecto, basta lembrar que foram os nossos ternos e ranchos de reis o paradigma para o desfile das escolas de samba do Rio. 

Quem tiver interesse, procure no Google os predestinados nomes de Hilário Jovino Pereira e Joana do Passinho, primeiros baliza e porta-estandarte do Reis de Ouro  — por sua vez o primeiro rancho carnavalesco do Rio de Janeiro, espécie de Ilê Aiyê novecentista da Guanabara. E tudo o que decorre daí.

Já sobre a atuação do Padre Pinto, vale dizer que ela era, antes de tudo, comunitária. E por isso deu resultado. Muito próximo dos moradores, inclusive da malandragem, ele conseguiu organizar a Folia de Reis (hoje infestada de paredões e desordem) e devolver-lhe o teor de prazer, reduzindo o transtorno comunitário, fazendo as famílias frequentarem-na em vez de evadirem durante o ciclo.

Em depoimento ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em 1999, ele explicou: “Já como pároco, alcancei violência em muitas dessas festas. Muita bebida, barracas em excesso para o espaço físico disponível. As famílias locais ficavam desconfortáveis, porque o pessoal que acorria ao bairro incomodava, pedindo água, permissão para usar o banheiro, e até mesmo fazer bagunça na festa. Muitas famílias saíam do bairro durante os festejos, por esse motivo”. 

E completou: “Hoje, as coisas mudaram. Diminuímos sensivelmente o número de barracas, não permitimos a instalação muito próximo à igreja, está mais organizado, para que as famílias permaneçam e participem da festa do seu bairro. Montamos várias equipes durante as festas, recebemos todos os ternos, e cada um tem sua vez para fazer a apresentação”.


Deu no jornal a atividade comunitário do Padre Pinto.

Além disso, Padre Pinto promoveu palestras sobre a história e as histórias da manifestação com Cid Teixeira, Consuelo Pondé de Sena e Hildegardes Vianna. E, em 1993, deu uma cartada fundamental: fundou o já citado Terno da Anunciação, o primeiro da Lapinha. Um terno cuja função, indicada no próprio nome, era (é, pois ele permanece em atividade) anunciar os outros. Por tudo isso, durante aquele período, o ciclo de reis vicejou e voltou a dar orgulho. Até a noite triunfal de 2006.

Pelo visto, acertou em cheio o restaurador José Dirson Argolo quando escreveu, para o catálogo da exposição “Urbanus”, que o religioso-artista plástico levou no Museu de Arte Sacra em 1998: “Tenho certeza de que muito ainda ouviremos falar do Padre Pinto, sacerdote e pintor, orador e desenhista, sempre perto do homem, sem se afastar do Criador”.

Atualmente, a Festa de Reis, apesar de todo o esforço da paróquia e da comunidade, só vem murchando como a maioria das tradicionais festas populares. Em abril de 2019, aos 72 anos, o Padre Pinto morreu na Paróquia São Caetano da Divina Providência, onde vinha guardando silêncio. Sua imagem, no entanto, cresce ano a ano como símbolo de criatividade, liberdade e irreverência. Ainda em 2006, os cineastas Daniel e Diego Lisboa filmaram "As Fitas Malditas do Padre Pinto", que traz cenas fortes, chocantes e reveladoras e que permanece inédito.

Além disso, ele deve inspirar também exemplos de sensibilidade social e mesmo disciplina. Afinal, além do estandarte aos reis magos ainda hoje exposto na Lapinha (e que não foi contemplado na reforma recente do largo), Padre Pinto também forjou ali a creche Tia Ziza (hoje abandonada) pois sabia que, assim como Jesus, todo menino é um rei e precisa de cuidados.

Nesta noite os ternos desfilarão em frente à bonita igreja. Que tudo corra em paz. E que o legado do religioso seja apreciado e apropriado em toda a sua largueza e complexidade.