Cultura
Meu Coco, de Caetano, é uma vida dedicada ao Brasil
Saudando novos e velhos colegas, em 12 faixas inéditas, músico reforça otimismo ante a grandeza do país: "Vale viver"
Foto: Fernando Young / Divulgação
Todo mundo já sabe, Caetano Veloso lançou (está lançando), seu 49° álbum, Meu Coco. O título é o mesmo da canção de abertura, a primeira que ele compôs para a série de 12 inéditas que formam o trabalho. Como é o nome de uma fruta e de um ritmo bem conhecidos, o cantor decidiu esclarecer (inclusive na capa) que o coco em questão é sua cabeça. Meu Coco, então, é “tudo o que se passa em minha cabeça no momento”, disse.
Pháneron (do verbo grego phaino = manifestar, exibir) é o nome de um lance pouco conhecido de Décio Pignatari, de forte teor autobiográfico, montagem de texto anti-discursivo + fotografias. Assim o poeta explicou o neologismo: “É tudo o que pinta na cabeça em qualquer momento”. E cito-o aqui apenas para dizer que, “por entre fotos e nomes”, o que pinta na água do Coco de Caetano também tem um gosto fortemente biográfico.
Claro que o que primeiro salta aos ouvidos é a lista enorme de nomes. Caetano Veloso cita colegas que vão de Schoenberg (...passando por Leo Santana, Billie Eilish, Gabriel do Borel, John Cage, Pixinguinha...) a Marília Mendonça. Isto é, referências para fora. Em geral pra ressaltar a força regenerativa da música (especialmente popular, mas também da impopular) para a inevitável grandeza do Brasil.
Mas há também muitas citações para dentro. Ou seja, de canções do próprio Caetano, e de diversas fases de sua carreira, formando um desenho e um compêndio. Não preciso fazer o índice remissivo completo, mas rolam faíscas de Um Índio, Feitiço, Irene, O Quereres, Os Mais Doces Bárbaros… e outros hiperlinks talvez semi-conscientes, como a Língua em Pardo (teu rosa é mais rosa que o rosa...) e Este Amor em GilGal. E por aí vai. A citação de Alegria, Alegria no primeiro single, Anjos Tronchos, no entanto, é a que diz tudo.
“Eu vou, por que não?”, afirmava-se interrogativamente o artista ante os desafios da era eletrônica, no final dos anos 1960. E com a mesma coragem e desconfiada alegria o faz outra vez, agora em contexto digital. Cantar na televisão ou no Tik Tok? Enfim, o que Meu Coco traz é, novo e novamente, Caetano. Do legítimo, do puro, do escocês (chinês?). E o que resulta desse registro que estou chamando de biográfico, somados a apreensão frente os “controles totais” e o deleite de uma transa virtual, é (sem spoilers) o que ele conclui, descobre, em Cobre: “Vale viver”!
Começando do adjetivo. Troncho é, claro, um sinônimo de torto, do anjo de Drummond. Mas, no jargão dos músicos, troncho também significa complexo. É com simples complexidade que as coisas são abordadas, desde os ritmos (que levada a da faixa-título!) até as ideias. “Católicos de axé e neopentecostais”. Palhaços líderes e poemas como jamais. Aliás, uma curiosidade: a aproximação entre o Drummond de sete faces e Augusto de Campos repete de certa forma a feita em Let’s Play That, por Macalé e Torquato. Hiperlinks. Algoritmo. Pelo que se vê, tudo em Meu Coco, no coco dele, trans(luz)borda da vida das canções.
A chave do segredo é que, além de querer guardar o mundo em si, o seu coração vagabundo também sempre quis guardar-se no mundo.
Por isso, ao nomear os outros, Caetano apresenta-se. Ao citar-se, evoca-os. “Ele me ensinou o sentido do som / E eu quis ensinar o sem som do sentido”, diz de Gil em GilGal. Gilgal: o chão da Aliança, fonte dos profetas. Um dia Rogério Duarte afirmou: “Gil é o profeta. Caetano é apenas seu apóstolo”. E Gil, num baião a João Gilberto: “Aparece a cada cem anos um / E a cada vinte e cinco um aprendiz (...) É assim que aparece mestre João / E aprendizes professando-lhe a fé / Um Francisco, um Caetano, algum Roberto / E a canção foi mais feliz”. No centro do centro do coco, João.
E no centro do centro do centro, o Brasil. No fundo, Meu Coco é de novo a velha vontade de inaugurar o Brasil, função de uma vida. “O Brasil vai dar certo porque eu quero”, disse o autor outro dia. Excesso de otimismo? É engraçado e revelador pensar que Não Vou Deixar tem os mesmos título e teor de uma música que Lobão direcionou a Pablo Capilé. E que também ostenta a própria canção como arma, rima, solução. Assim como ver que Macalé (com João Donato) lançou indagorinha a cubana Coco Táxi.
Pois bem, música grande o país tem, continua tendo. A pergunta que me fica ao final do disco é: o algoritmo vai deixar essa relevância ser relevante, como um dia o fizeram a Tv Tupi, a Globo? Sem Samba Não Dá. Gostaria de ouvir, na receita onomástica, uma referência à espanhola Rosalía. O nome de Milton Nascimento reduzido à silabagem poética dá uma redondilha menor, como os versos de “E Agora, José?”, para rimar com Ben. Aqui, a festa não acabou, conclui Caetano. Tá só começando. E por fim, gosto de imaginar a saudação ao Cristo Redentor feita em anagrama iorubaramaico: Epa Abba! No espírito de tudo, como algum poeta sonhou.
PS: A inadmíssivel e inacreditável morte de Letieres Leite (arranjador de Pardo) é perda fundamental para a engrenagem. Quase desmotivou a publicação deste artigo. Mas seu legado poderoso continua, é inextinguível.
📲 Clique aqui para fazer parte do novo canal da Metropole no WhatsApp.