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Gil-engendra: vendedor de água mineral no Aquidabã é exemplo na pandemia
Natural de Recife, ele lutou contra a fome e viu suas vendas aumentarem graças a muito trabalho e um incentivo da Rádio Metrópole
Foto: Tácio Moreira / Metropress
Quem passa pelo Aquidabã, encruzilhada que liga as várias regiões de Salvador, só passa sede se quiser. Pois se depender de Gil, vendedor de água mineral que atende ali na sinaleira, todos serão saciados. Além do preço justo e jeito simpático, ele tem maquininha de crédito e débito e, desde o início da pandemia, se destaca também pelo modo como cumpre os protocolos de segurança, até mesmo ultrapassando as exigências oficiais. “Aceita um pouco de álcool?”, oferece inclusive a quem não compra.
Sempre de máscara, respeitando as distâncias, Gil foi citado, em um comentário na Rádio Metrópole, em junho, como exemplo a ser seguido por comerciantes formais e informais e também pelo cidadão em geral. Desde então, segundo depoimento próprio, viu suas vendas crescerem e agarrou a oportunidade com tino e competência. “Começou a parar muita gente aqui dizendo que ouviu falar de mim na rádio. Passei a vender três vezes mais e até já aluguei um quiosque para armazenar a mercadoria”, conta. E emenda: "Você não imagina o que é não ter ninguém em um lugar e de repente se sentir acolhido”.
Então, vamos aproveitar a deixa para apresentar o sujeito. Hermógenes Paulo Cruz tem 46 anos e é natural de Recife (PE). Após perder a família, decidiu tentar nova vida no sul do país, mas acabou ficando em Salvador. Já na rodoviária, procurou a pousada mais barata da cidade e assim foi se parar no bairro de Santo Antônio Além do Carmo. Dali para o Aquidabã foi um pulo e, após sondar o comércio local, ele decidiu botar uma guia de água. "O diferencial era o preço, eu vendia por R$ 1 quando todos cobravam dois", explica. Resultado, duas caixas viraram quatro, quatro viraram oito e hoje ele já pensa até em contratar funcionários. "Consegui graças a Deus e também por intermédio da fome", define.
O pernambucano Hermógenes, com seu nome de personagem do “Grande Sertão: Veredas”, bem que poderia se chamar Severino. Mas do apelido de infância, Moginho, acabou virando Gil, como o nosso Gilberto. E para continuarmos nas referências literárias, disse o poeta maranhense Sousândrade, o primeiro do mundo a dedicar versos a Wall-Street: “Gil-engendra”. Sim, Gil produz. “Eu fiquei cativado com o jeito dele trabalhar, faço questão de comprar, para incentivar, mesmo quando não estou com sede”, diz o motorista Amarildo.
E, pelo visto, Amarildo não foi o único a perceber na organização do ambulante um perfil auspicioso para a economia do país. “Recebi muita ajuda. Uma vez veio um cara com um saco cheio de moedas e disse que era para ajudar no negócio. Tomei até um susto, com medo de ser dinheiro do tráfico (risos), mas percebi que era solidariedade mesmo”, lembra o vendedor que, no início, precisou resistir à pressão dos outros ambulantes que o queriam forçar a subir o preço: "Para mim 100% de lucro tava bom demais. A água era 50 centavos. Só num dia vendi 22 caixas!".
A crise imposta pela pandemia, porém, o forçou a aumentar mesmo o preço do produto. Primeiro, R$ 1,50. Depois os R$ 2 que o cartel dos ambulantes queria desde o início. O diferencial da maquininha e o fato de agora comprar água direto das fábricas, contudo, não deixou nem as vendas nem o lucro caírem. Com três maquininhas já compradas, Gil agora quer expandir. “Penso em botar funcionários em outros pontos aqui perto mesmo. Só preciso encontrar as pessoas confiáveis”, explica ele, ressaltando que privilegiará seus companheiros de igreja.
Outro projeto é criar um carrinho próprio para a venda de água. Ele pretende que seja um híbrido dos carrinhos de cafezinho com aquelas bandejas rolantes de sobremesa dos restaurantes. "O cliente verá, do seu carro, a água gelando no meu... Vai dar sede na mesma hora", sonha.
Outro sonho é o de que sua noiva, que está em Recife, chegue logo para ajudá-lo a tocar os projetos. Enquanto isso, Gil já se entrosou com o pessoal do Aquidabã, sempre lotado de gente (muitos em grande vulnerabilidade social) e volta e meia alguém o aborda, pede um favor etc. “Eu acho admirável as pessoas que chegam aqui para oferecer comida. Podiam simplesmente estar na praia, mas se dedicam ao próximo. É irracional! Eu já tive condições de fazer e não fiz. Hoje, mesmo com pouco, ajudo quem posso. Isso para mim é Deus", resume.
Com curso de administração incompleto, o homem que reiniciou a própria vida entre os viadutos que ligam vales em Salvador se inspira em Rick Chesther, que também começou vendendo água, no Rio de Janeiro, e hoje é referência mundial do empreendedorismo. "Eu não podia ficar choramingando, me esforcei e Deus me ajudou. Espero conseguir mais, com fé e trabalho", diz Gil. O sinal fecha, ele se apressa: "Olha a ááágua!", grita. Uns compram, outros não. Alguns aceitam um borrifo de álcool. O sinal abre. Sempre haverá um sinal aberto. Mas é preciso aproveitar também os fechados. Fica a lição de Gil. Os carros passam.
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