Faça parte do canal da Metropole no WhatsApp >>

Sexta-feira, 26 de abril de 2024

Home

/

Artigos

/

Sem água, luz, nem feijão, mas com fuzil

Sem água, luz, nem feijão, mas com fuzil

No mundo real dos brasileiros comuns, que não usam a cada queixa a palavra narrativa, a realidade tem sido feita de faltas e de medo, e não permite negação, pois os efeitos colaterais são fisiológicos, acontecem no estômago

Sem água, luz, nem feijão, mas com fuzil

Foto: Reprodução Jornal da Metropole

Por: Malu Fontes  no dia 02 de setembro de 2021 às 08:22

Você, muita gente, pode não se reconhecer ou identificar com os brasileiros que perderam ou estão perdendo o emprego, a renda, a comida no prato, a dignidade e o direito à sobrevivência com o mínimo indispensável, como um teto, uma refeição, um banho. Mas a onda de problemas nacionais que vem se agigantando, se não quebra perto da sua vida de um jeito, quebra de outro, talvez com menos estragos. Mesmo as elites, como haverão de comemorar estarem em um país que é orientado, em cadeia nacional de rádio e televisão, na noite do último dia de agosto de 2021, a usar o chuveiro elétrico, o ferro de passar e o ar-condicionado às manhãs e nos finais de semana? 

O pronunciamento do ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque, cuja cara ninguém sabe ou lembra como é, e agora, se lembrar, será para associá-lo à emergência de abastecimento de água e energia elétrica a que o país está submetido, é só mais um indício de que as coisas não param de piorar. Mas, mesmo assim, Paulo Guedes, sempre ele, o vudu da vez espetado pelas agulhas infalíveis do centrão, diz com a cara mais plácida e arrogante do mundo que são negacionista as pessoas que não vêm os avanços econômicos do governo Bolsonaro: “A economia está bombando e continua a narrativa de que o governo não está fazendo nada. Há narrativas negacionistas, que negam a força da economia”. É esse o delirante mundo do ex-Posto Ipiranga. 

No mundo real dos brasileiros comuns, que não usam a cada queixa a palavra narrativa, a realidade tem sido feita de faltas e de medo, e não permite negação, pois os efeitos colaterais são fisiológicos, acontecem no estômago. Falta dinheiro e comida. Medo do presente, do futuro e da fome. Entre as filas de gente Brasil afora para pegar carcaças de frango e ossos bovinos não aproveitáveis descartados e distribuídos nas indústrias de beneficiamento de carne, usados para dar algum sabor a qualquer receita rala, soma-se agora outra iguaria da miserabilidade nacional: o feijão bandinha. Se lhes soa mais poético, chamem de feijão partido, ou feijão quebrado, agora exposto frequentemente nas gôndolas dos supermercados e mercadinhos das periferias, mas não só. 

SEM PÉS, SEM OS DEDOS DAS MÃOS -

O feijão bandinha, partido, quebrado é, digamos, o equivalente ao ‘osso descartado’ do feijão, os grãos que não serviam até pouco tempo para serem consumidos e eram transformados em ração animal. Nos últimos meses, com o preço médio do produto na faixa dos R$ 8,00, o bandinha migrou para as gôndolas, com o quilo entre R$ 1,50 e R$ 2,00. E há quem compre e feliz de quem pode comprá-lo, pois há quem não possa comprar sequer grãos quebrados. E quem reclama do preço do produto é, segundo o chefe da nação, um imbecil, que deve parar de encher o saco e ficar calado diante de quem quer e pode comprar fuzil. Se muita gente está sem poder comer, o que tem, também, no fato de a energia elétrica ficar um pouco mais cara? O importante é o povo armado. Com armas, segundo o tutorial de sobrevivência do presidente da República, é que se conquista a liberdade. E quem não conquistar esta liberdade dos armados vai precisar das migalhas do Estado. 

Chegamos a setembro, com recomendação para banhos matinais ou domingueiros, estímulo ao fuzil, cardápio à base de ossos e grãos imprestáveis. A distopia é profunda e ampla, com cangaçeiros urbanos sitiando cidades, como se viu em Araçatuba na última segunda-feira de agosto com uma apocalíptica explosão de dois bancos públicos na madrugada. E as formas de morrer deixando o cinema de horror no chinelo. Um ciclista passou perto de um explosivo com sensor de movimentos espalhados na cidade pela quadrilha e os dedos das mãos e os dois pés foram decepados num fragmento de segundos. Outro saiu na madrugada para filmar o terror. Morreu, atravessado por tiros. De fuzil.